Não há desvario, o presidente está ‘trabalhando’

Alvo de amplas manifestações de rua em desaprovação ao seu governo, ainda no início de mandato, o presidente Jair Bolsonaro compartilhou um vídeo pornográfico no último dia de Carnaval.
Em editorial, sob o título “Governe, presidente”, a Folha registrou, nesta quinta-feira (7), que, há 66 dias no cargo, Bolsonaro “tem mais a fazer do que publicar boçalidades e frases trôpegas numa rede social”.
“Atiçar suscetibilidades à esquerda e à direita com a postagem de uma cena escatológica durante o Carnaval pode até reativar por um átimo o clima de polarização irracional que parece ter favorecido Jair Bolsonaro na eleição”.
“Não há mais cargo a ser disputado. Há um país repleto de problemas graves à espera de que o eleito ponha-se a trabalhar para resolvê-los. Os dias de agitar torcida terminaram”, afirma o jornal.
Bolsonaro está “trabalhando”, a seu modo.
O jornalista Roberto Dias, na mesma página, lembra que “os tuítes de Donald Trump, que nem carregavam tanta conotação moral quanto os de Bolsonaro, causavam alvoroço no começo do governo”.
Maria Cristina Fernandes, em sua coluna no Valor, sugere que “o presidente da República não foi acometido por um surto de desvario”.
“Bolsonaro incitou as plateias mais radicalizadas em sua defesa nas redes sociais, especialmente as religiosas, que têm-se mostrado avessas a reformas como a da Previdência”, diz ela.
Segundo a jornalista, “as pontes que o presidente precisará lançar à oposição se quiser aprovar a reforma da Previdência já foram minadas pelo anúncio de uma representação contra si, junto à Procuradoria-Geral da República, por crime de responsabilidade decorrente da divulgação de pornografia”.
Ao veicular o vídeo, Bolsonaro também ofuscou a repercussão negativa do tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro, “que rotulou de ‘larápio posando de coitado’ um avô preso suplicando à justiça para assistir ao velório de um neto”.
Pablo Ortelado, filósofo e professor da USP, disse a Cristiane Agostine, também no Valor, que Bolsonaro investe em temas controversos para manter seus apoiadores mobilizados e, ao mesmo tempo, desviar o foco dos problemas do governo.
As críticas do presidente ao Carnaval estão relacionadas com temas de sua campanha eleitoral: a defesa da família, em antagonismo a movimentos feministas e LGBT.
Bolsonaro deixa em segundo plano as denúncias de candidaturas laranjas e as suspeitas sobre movimentações financeiras de sua família.
Como registra Bruno Boghossian, em sua coluna na Folha, “a vitória da Mangueira no Rio –com um enredo que homenageava indígenas, quilombolas e uma vereadora tratada com desdém pelo clã Bolsonaro– joga luz sobre o que ele quer mascarar”.
“É uma forma de governar”, diz Matias Spektor, professor da USP, em sua coluna na Folha. “O gesto é um ato político da maior importância”, avalia.
O professor lembra que nas décadas 1920/1930 ideólogos da ditadura militar denunciaram seus opositores por degeneração sexual e declínio moral e usavam os meios de comunicação com destreza.
Na década de 2000, os líderes desse ativismo moralista foram Silas Malafaia e Marco Feliciano, “para quem a esquerda representaria uma séria amaça à família tradicional e à sexualidade convencional”, anota Spektor.