Democracia não admite exclusivismos, diz advogado

 

Sob o título “O Estado democrático de Direito”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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Segundo o site do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 7 de março do corrente ano, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, durante as comemorações dos 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, que vai cumprir sua missão de governar o Brasil “ao lado das pessoas de bem”, e que a liberdade e a democracia só existem “quando as Forças Armadas assim o querem”.

Em discurso de cerca de quatro minutos, Bolsonaro ressaltou que quer estar ao lado “daqueles que amam a Pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhantes à nossa (Brasil), e daqueles que amam a democracia e a liberdade”.

A declaração infeliz não leva em conta que governa-se sob a medida da Constituição, dentro de um Estado de Direito, para todos, e não para alguns, dentro de um espaço eminentemente inclusivista, que é próprio da democracia. A democracia não admite exclusivismos.

Com o devido respeito, há na Constituição do Brasil, em seu artigo 1º, como princípio constitucional impositivo, o respeito ao Estado democrático de Direito.

Aquela afirmativa feita desconhece a Constituição e açoita a democracia.

Esse princípio funde, inspirado no artigo 2º da Constituição portuguesa, os ideais do Estado de direito e do Estado democrático.

Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos uma resposta: “Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de Direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de Direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de Direito. O Estado democrático é Estado de Direito e só sendo-o é que é democrático”.

Os estudiosos veem o conceito de Estado de Direito como uma coloração nitidamente germânica. Ali foi que, após duas guerras mundiais sangrentas, e um desrespeito flagrante aos direitos humanos, que o conceito se sedimentou com maior rigor.

O Estado de Direito é o oposto do Estado de Polícia. É de sua essência, pois, a submissão da atuação do Estado ao direito, do que defluirá a liberdade individual, e o repúdio à instrumentalização da lei e da administração a um propósito autoritário.

Canotilho e Vital Moreira consignaram sobre o princípio: “Afastam-se ideias transpessoais do Estado como instituição ou ordem divina, para se considerar apenas a existência de uma res pública no interesse dos indivíduos. Ponto de partida e de referência é o indivíduo autodeterminado, igual, livre e isolado”.

O Estado de Direito está vinculado, nessa linha de pensar, a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo.

Ainda ensinaram Canotilho e Vital Moreira: “O Estado de Direito reduziu-se a um sistema apolítico de defesa e distanciação perante o Estado”.

Tornam-se as suas notas marcantes: a repulsa da ideia de o Estado realizar atividades materiais, acentuação da liberdade individual, na qual só a lei podia intervir e o enquadramento da Administração pelo princípio da legalidade.

A procura da jugulação do arbítrio, como acentuou Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, primeiro volume, pág. 422), só se pode dar debaixo dos subprincípios que estão enfeixados na concepção ampla do Estado de Direito. Não se conhece a liberdade senão os países que consagraram a primazia do direito.

Burdeau(La Democracia, pág. 61) ensinava: “Politicamente, o objetivo da democracia é a liberação do indivíduo das coações autoritárias, a sua participação no estabelecimento da regra, que, em todos os domínios, estará obrigado a observar. Economicamente e socialmente, o benefício da democracia se traduz na existência, no seio da coletividade, de condições de vida que assegurem a cada um a segurança e a comodidade adquirida para a sua felicidade. Uma sociedade democrática, é, pois, aquela em que a fortuna não é uma fonte de poder, em que os trabalhadores estejam ao abrigo da opressão que poderia facilitar sua necessidade de buscar um emprego, em que cada um, enfim, possa fazer valer um direito de obter da sociedade uma proteção contra os riscos da vida.”

Já dizia Lincoln que a democracia é governo do povo, pelo povo e para o povo.

Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o principio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental do Estado democrático.

Como disse José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5º edição, pág. 120), governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva na técnica da representação política.

Toda a democracia assenta as suas bases no povo.

A democracia no Brasil, no contexto da Constituição soberana de 1988, se assenta na vontade popular e não nos desígnios de poderosos de armas.

No passado, já tivermos péssimas experiências com o uso de forças autoritárias a pretexto de defender o povo.