STF investigar sem Ministério Público é invadir seara alheia, diz advogado

Sob o título “Um procedimento inusitado”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador da República aposentado.

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1. O FATO

Noticiou-se que para se contrapor a uma campanha contra a Corte, o ministro Toffoli lançou mão de um instrumento mais do que controverso. Anunciou a abertura de um inquérito criminal, sem provocação nem objeto definido, para, de forma genérica e perigosamente abrangente, investigar ameaças, calúnias, difamações e sabe-se lá mais o que contra ministros e familiares.

Trata-se de um balaio no qual cabem desde os ataques virtuais até procuradores da República que tecem críticas aos ministros e auditores da Receita Federal. Senadores que propõem a CPI da Lava Toga estarão enquadrados? Jornalistas que criticarem ministros entrarão no rol dos investigados? Quem xingar ministro no avião entra na roda? Não se sabe. Justamente porque, sob o manto do sigilo, não se tem acesso ao escopo do tal inquérito.

Fala-se na instauração de Inquérito Judicial, pela Portaria GP nº 69 de 14/03/2019, subscrita pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, em que, ao mesmo tempo, designou ministro daquela Corte para apurar “a existência de notícias fraudulentas (fake News), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, difamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.

2. A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA ABORDADA

Não se tem notícia anterior com relação a esse procedimento que se afigura frontalmente inconstitucional.

Com o devido respeito, dir-se-á que não cabe ao Poder Judiciário investigar. Esse papel é do Ministério Público com atuação da polícia, nos limites de sua atribuição.

Aliás, se pode falar em investigação, ela há de ser pública. Se não bastasse, as pessoas seriam ou estariam sendo investigadas, ao que se tem notícia, não têm prerrogativa de foro no Pretório Excelso.

Repita-se que o exercício da ação penal e ainda das investigações, é do Parquet. Se este concluir pela não propositura da ação penal, nada mais fará senão manifestar a vontade do Estado, de que é órgão, no sentido de não haver pretensão punitiva a ser deduzida.

O Ministério Público tem o poder de ação, e o juiz, o poder jurisdicional. Não cabe assim ao STF, em situação que se pensa isolada, desvirtuar, alongando, contra a Constituição, seu mister constitucional.

Ademais, sob pena de agredir a Constituição, permitir que haja investigação criminal sem a participação do Parquet. Isso é de uma inconstitucionalidade patética.

3. A INVESTIGAÇÃO DE MEMBRO DO PARQUET

Na matéria, quanto ao membro do Parquet, há o artigo 242 da Lei Complementar 75/93, que assim o diz:

“As infrações disciplinares serão apuradas em processo administrativo; quando lhes forem cominadas penas de demissão, de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, a imposição destas dependerá, também, de decisão judicial com trânsito em julgado.”

A mesma Lei Complementar nº 75/93 prevê como formas de apuração:

A sindicância(artigo 246): A sindicância é o procedimento que tem por objeto a coleta sumária de dados para instauração, se necessário, de inquérito administrativo.

O inquérito administrativo, nos termos dos artigos 247 a 251 da Lei Complementar nº 75.

O processo administrativo de onde se lê da Lei Complementar 75/93, nos artigos 252 a 261.

4 – A AFRONTA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Independente do fato de que não se pode considerar como ofensa a honra, na forma penal, a censura, ainda que pública, deve-se ter em vista que há, nos termos já citados, meios legais para a apuração no que concerne aos membros do Parquet, que, porventura, estariam sendo objeto de “exótica investigação citada”, como o devido respeito.

O procedimento noticiado agride o princípio da inércia, base da atuação do Judiciário, pelo qual somente poderá agir se demandado e não de oficio.

Assim agindo, se coloca o Judiciário, por seu órgão de cúpula, invadindo saara alheia, por exercer, de maneira oblíqua, o poder de ação e de investigação.

No passado, tivemos o instituto da ação penal ex officio, que não foi recepcionada pela Constituição de 1988.

Nesse tipo de instituto afrontava-se ao princípio ne procedat iudex ex officio. São essas as palavras de Pimenta Bueno:

“O que faz o juiz quando procede ex officio? Constitui-se, simultaneamente, julgador e parte adversa do delinquente; dá a denúncia a si próprio, escolhe as testemunhas e inquire-as perguntando o que julga conveniente, e por fim avalia as provas que ele criou, e pronuncia, então, como entende. E conclui então: nada porém justifica o procedimento oficial qual nossa lei estabelece, abuso nascido dos antigos erros, abuso proscrito.

Afronta-se o devido processo legal.

Os procedimentos antes previstos no CPP, foram revogados pelo texto constitucional(artigos 26 e 531 do CPP), o que foi endossado pela Lei nº 11.719/08.

No entanto, tem-se a possibilidade do Tribunal agir de ofício, sempre que se trate de evidência de coação ilegal à liberdade de locomoção, do que se lê do artigo 654, § 2º do CPP, nos casos de habeas corpus de oficio, lembrando-se que o habeas corpus é uma ação constitucional, em defesa do ir e vir.

O Supremo Tribunal Federal tem a função de guardião da Constituição, de preceitos fundamentais e garantias institucionais e constitucionais, não se destinando a ser um órgão investigativo, de caráter policial, o que afronta a Constituição.

5. O ARTIGO 40 DO CPP

Deixa-se, erradamente, com o devido respeito, de se aplicar o artigo 40 do CPP, ainda em vigência:

“Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.”

Os autos mencionados no artigo 40 concernem a processo ou procedimento, de que tratam, bem como papeis que corram por qualquer motivo, em juízo civil de jurisdição contenciosa ou voluntária em juízo penal, como ensinou Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (Do artigo 40 do Código de Processo Penal, in Análise Jurisprudencial, São Paulo, 1977, n. 3, pág. 70, n 10).

O cumprimento do disposto nesta disposição, decidiu o STF, não acarreta o impedimento do julgador que dá a notitia criminis e sugere a abertura do processo(RTJ 48/321).

Aliás, o fato de o juiz ou Tribunal haver determinado a remessa de cópias de peças ao Ministério Público não constitui ilegalidade, uma vez que o órgão da acusação poderá entender inexistir infração penal(STF, RTJ 84/830; no mesmo sentido; RTJ 46/717). Não há que se falar em reformatio in pejus, em tal procedimento(STF, HC 57.354, DJU 30.11.79, pág. 8983).

Lembro, por fim, que o exercício da jurisdição pressupõe provocação da parte que o faz justamente quando exercita o direito de ação. Jurisdição sem ação é corpo sem alma, sendo impensável uma investigação iniciada por portaria da autoridade judicial e muito menos ação.

Como deverá agir o magistrado diante de uma noticia crime que lhe é apresentada? Poderá remetê-la ao titular da ação penal pública incondicionada para as providências cabíveis, ou requisitar a instauração de inquérito policial para presidi-lo, nunca fazendo as vezes do Parquet ou da Polícia, para instauração de inquérito, que é um procedimento de índole eminentemente administrativa, de caráter informativo e preparatório da ação penal, regendo-se pelas regras da Administração em geral.

Aos prejudicados por atos de coação no procedimento que foi aqui noticiado ou a qualquer do povo, cabe o ajuizamento do habeas corpus perante o próprio STF, tendo como coatora a autoridade que o preside.