Golpe jamais pode ser festejado, diz Associação Juízes para a Democracia

Sob o título “Em uma democracia, um golpe jamais pode ser festejado”, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota oficial que repudia as manifestações no sentido de se comemorar o golpe militar de 1964.

Segundo a nota, “é inaceitável que um governo que se pretenda democrático exalte um período obscuro de nossa história, em que os mais comezinhos valores democráticos foram vilipendiados pelo regime imposto”.

“A rigor, a Presidência da República faz apologia a um fato histórico que, na atual ordem constitucional, é descrita como crime imprescritível e inafiançável nos termos do artigo 5, XLIV da Constituição de 1988”, afirma a entidade.

Eis a íntegra da manifestação:

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A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem, diante das manifestações estatais no sentido de se comemorar o golpe de 1964, manifestar seu veemente repúdio ao ato.

Aproxima-se a data na qual, em 1964, um golpe militar instituiu uma longa ditadura civil-militar no Brasil. O atual governo, segundo informou o porta-voz da presidência, Otávio Rêgo Barros, pretende realizar as “comemorações devidas” com relação ao 31 de março de 1964, cujos eventos resultaram no golpe civil-militar de 1º de abril de 1964.

Na data de 1º de abril de 1964, as forças armadas assumiam o governo brasileiro, no que chamaram de “revolução”, sob o pretenso fundamento de uma “ameaça comunista” que justificaria a instituição de uma nova ordem de cassação de liberdades e direitos.

Por ironia, a data é popularmente conhecida como o “dia da mentira”, que fez com que os apoiadores do golpe simplesmente adequassem o evento histórico para o dia anterior: o 31 de março que agora se pretende celebrar.

A data está longe de ser a única imprecisão histórica que o atual Presidente da República comete. Não houve revolução, mas um golpe civil-militar que destituiu o presidente democraticamente eleito, João Goulart. Não havia ameaça comunista, como já provaram documentos oficiais como o relatório da Comissão Nacional da Verdade e diversos historiadores.

Em 1964, as forças que promoveram o golpe civil militar precisaram reeditar a história para adequar à narrativa que lhes permitiu tomar de assalto o poder, o quebrar a ordem constitucional vigente.

Um governo pretensamente democrático não pode exaltar uma data que simboliza o fim da democracia no Brasil, que passou a ser governado por uma ditadura durante mais de duas décadas.

É inaceitável que um governo que se pretenda democrático exalte um período obscuro de nossa história, em que os mais comezinhos valores democráticos foram vilipendiados pelo regime imposto.

A deposição de um presidente legitimamente eleito pelo povo, a tortura institucional, os assassinatos e os desaparecimentos perpetrados pelo Estado, o enfraquecimento do Poder Judiciário, a cassação de parlamentares, o desrespeito à liberdade de imprensa, o desprezo pelos direitos e garantias fundamentais, além de outros atos autoritários, somente devem ser lembrados com o escopo de nunca mais serem repetidos, e jamais festejados, principalmente através do patrocínio estatal.

Ressalte-se que a sistemática política de violação de direitos e extermínio de opositores da ditadura impôs ao Brasil duas condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao julgar os casos Vladimir Herzog e Gomes Lund.

A comemoração institucional do golpe de 1964, além de ser mais um episódio vergonhoso da nossa história, é um ato tendente ao enfraquecimento da democracia. A rigor, a Presidência da República faz apologia a um fato histórico que,na atual ordem constitucional, é descrita como crime imprescritível e inafiançável nos termos do artigo 5, XLIV da Constituição de 1988.

Em última instância, a celebração proposta pelo Presidente é desrespeitosa e atinge os direitos de honra e imagem das/os cidadã(o)s que reconhecidamente sofreram com as perseguições, violências, tortura, desaparecimentos forçados durante a ditadura civil-militar e de suas famílias.

Ao celebrar o golpe, o Presidente eleito vale-se da mesma prática utilizada em 1964. Corrompe a história num revisionismo infundado para apagar da memória institucional e coletiva a lembrança dos direitos que foram suprimidos e a luta dos que resistiram.

Privar um povo de sua história, da memória e da verdade é um ato de tirania de um governo que macula o passado para tentar usurpa-lhe do futuro.

O regime democrático é uma frágil conquista civilizatória, dependendo sua perenidade de sua intransigente e constante defesa por todos aqueles que com ele tem compromisso.

Inexiste outro caminho para a convivência pacífica dos indivíduos, da pluralidade de ideias e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, se não for através da democracia. Um golpe, que é a antítese de sua essência, deve ser execrado e jamais comemorado por um Estado que pretende ser classificado como Democrático de Direito.

Por essas razões, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) manifesta veementemente seu repúdio contra a comemoração estatal do golpe de 1964, ato que viola e enfraquece o Estado Democrático de Direito e conclama todas/as/os seus associadas/os e todas/os que prezam pela democracia a manifestar-se ,de todas as formas possíveis, pelo direito à memória, à verdade e ao futuro da democracia brasileira.

São Paulo, 27 de março de 2019.