Juíza que deu lanche a presos sem algemas se diz perseguida pelo TJ-SP
A juíza Silvia Estela Gigena, removida da comarca de Araraquara (SP) sob a acusação de quebrar as regras de segurança da Polícia Militar e fornecer lanche a seis réus presos sem algemas em seu gabinete, obteve liminar parcial no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O CNJ abriu revisão disciplinar, atendendo à solicitação da magistrada, que se diz perseguida pela cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O conselheiro Luciano Frota, do CNJ, determinou que o tribunal não preencha o cargo de juiz titular da 2ª Vara Criminal de Araraquara, até a decisão final do colegiado.
“Seria temeroso permitir que o TJ-SP proveja o cargo, movimentando a carreira e atingindo a esfera funcional e pessoal de terceiros”, afirmou Frota.
Em fevereiro, o Órgão Especial do TJ-SP aprovou, por 14 votos a 10, a transferência da juíza, de Araraquara, na região central do estado, para uma comarca em Registro, no Vale do Ribeira, na região sul.
A defesa de Silvia Estela Gigena entende que a remoção para uma comarca tão distante –quando havia outras alternativas– confirma a perseguição à sua cliente.
O relator do caso no TJ-SP, desembargador Márcio Bártoli, votou pela aplicação de censura. Disse que não havia “relevância a ponto de justificar a excepcionalíssima relativização da garantia da inamovibilidade”.
O desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, atual corregedor-geral de Justiça, abriu a divergência. Entendeu que a pena adequada seria a remoção da magistrada.
Pinheiro Franco afirmou nos autos que houve “falta de prudência consistente na quebra das regras de segurança estabelecidas pela Polícia Militar para escolta de presos, e oferecimento de lanche aos presos sem dispensa do mesmo tratamento aos policiais militares”.
Julgamento sem contraditório
Durante o julgamento, o relator Márcio Bártoli afirmou que o corregedor analisou provas obtidas na fase preliminar da investigação, sem o contraditório.
“Basta ler a prova que colhi lá em Araraquara e aqui. Então, causa uma certa dúvida”, disse.
O advogado que representa a juíza, Luiz Fernando Freitas Fauvel, diz que o voto do corregedor “não cita em momento algum o depoimento prestado nos autos administrativos pela magistrada”.
Pinheiro Franco, segundo ele, “ignorou solenemente a oitiva da magistrada na fase final da instrução processual”.
Ele diz que a juíza, argentina naturalizada, é alvo de discriminação e preconceito por suas posições garantistas.
Fauvel vê “muita semelhança” com julgamento da então desembargadora recém-aposentada do TJ-SP Kenarik Boujikian.
Em agosto de 2017, o CNJ anulou –por 10 votos a 1– a pena de censura aplicada a Boujikian, sob a alegação de que ela teria violado o princípio da colegialidade e assinado decisões monocráticas libertando réus que estavam presos preventivamente por mais tempo do que a pena fixada.
O rigor do julgamento da juíza de Araraquara surpreendeu alguns juízes estaduais. Eles registram que a magistrada possui excelente currículo, é juíza desde 1993.
Fauvel vislumbrou no julgamento a influência do presidente do TJ-SP, Manoel Pereira Calças, que foi corregedor-geral à época da instauração das investigações. Segundo ele, o então corregedor queria que a juíza se aposentasse.
Pereira Calças “não perdeu a chance, antes de declarar o seu voto, de dizer aos pares que acompanhava a divergência por conhecer o caso da época em que foi corregedor”, diz.
A condenação, “ao que tudo indica, estava pré-definida desde o início da fase investigativa”. Fauvel diz que houve “uma forçada (e, por que não dizer, ilícita) versão, montada pela corregedoria de forma desleal”.
A defesa manifestou “a mais efusiva repulsa pelo suposto lamentável comportamento político-subserviente da atual corregedoria”.
Julgamentos políticos
“Causa espécie tenha o Órgão Especial do maior Tribunal de Justiça do país baseado a condenação de um de seus pares, ainda que por maioria, tão somente nos testemunhos colhidos na fase preliminar, sem o contraditório”, diz Fauvel.
“O caso parece demonstrar que o TJ-SP também faz julgamentos políticos para atender a interesses (ou caprichos) pessoais de seus dirigentes”. Casos mais graves envolvendo outros juízes tiveram decisões brandas, diz.
A defesa da juíza alegou que houve um “concerto oportunista entre um promotor e a Polícia Militar”.
O promotor estava descontente com a juíza, pois, “segundo sua concepção, ela era muito pródiga em conceder liberdade aos réus presos em flagrante delito”. Chegou a dizer que “na primeira instância não tem que soltar ninguém”.
A Policia Militar teria agido em retaliação. “Houve resistência às ordens dadas pela magistrada”.
Consta nos autos que imagens dos presos se alimentando no gabinete da juíza foram captadas ilicitamente por policiais militares.
A defesa sustenta que, “no momento em que lancharam, os acusados não estavam mais ‘presos'”.
“Haviam sido relaxados os flagrantes de dois deles, e concedida liberdade provisória para os outros quatro”.
“O juízo de valor acerca da conveniência de manter ou retirar as algemas dos presos nas dependências da Vara Judicial é do juiz presente na direção dos trabalhos forenses”, diz o advogado.
“Não cabe ao ilustre juiz corregedor, e, com toda vênia, nem mesmo ao Órgão Especial, nestes autos administrativos, realizar novo juízo de valor a respeito”.
A defesa da juíza considerou “ofensa injuriosa” o corregedor atribuir à decisão da magistrada uma “aparente promiscuidade”. Na sessão de julgamento, o relator Márcio Bártoli criticou a expressão usada pelo corregedor.
“Estamos lidando com uma senhora quase sexagenária, mãe de dois filhos e avó, que nem estava lá na sala. Essa palavra é muito forte, isso aqui vai ficar gravado para sempre. Que promiscuidade é essa, mandar servir sanduíche para preso?”, perguntou o relator.
Apesar do questionamento, Pinheiro Franco manteve a expressão durante a sessão de julgamento. Posteriormente, retirou a palavra do voto escrito.
A defesa afirmou que “a expressão ficou marcada, a pecha de promiscuidade foi amplamente divulgada, ofendendo os atributos pessoais do decoro e dignidade da magistrada”.
OUTRO LADO
O corregedor Geraldo Francisco Pinheiro Franco afirmou nos autos que prefere “relevar os termos pouco elogiosos com que a processada [juíza] se refere ao voto que proferi”.
Atribuiu “tamanha agressividade e tão desrespeitoso menoscabo” a uma “tentativa de desviar a atenção dos julgadores e trazê-la também para o patamar da emoção”.
Disse que os réus foram presos em flagrante por prática de crimes graves (alguns por tráfico, outros por emprego de arma em roubo, um por violência doméstica –arremesso de faca que atingiu a nuca da companheira).
“Nenhum deles poderia ser considerado tecnicamente ‘solto'”, afirmou.
O corregedor disse que retirou o termo “promiscuidade” do voto escrito. “No curso da sessão de julgamento, constatei a possibilidade de que fosse objeto de compreensão imprecisa quanto ao significado, uma vez que nem todos podem atentar para os vários sentidos da palavra promiscuidade”.
“Também percebi que, por vezes, há quem conheça apenas o significado de conotação sexual”.
“No caso deste processo administrativo, nunca houve menção a relacionamento sexual, de sorte que sequer cogitei que, sem motivo lógico, o termo seria tomado no sentido de índole sexual”.
“Utilizei o termo no sentido de que a permanência dos presos no gabinete da magistrada constitui episódio de mistura entre o Juízo e os presos, tratamento diferenciado frente à acusação”.
Pinheiro Franco votou contra o retorno da magistrada à comarca, “dada a possibilidade concreta de prejudicar a atividade jurisdicional que vier a exercer, em detrimento de todo o Poder Judiciário estadual”.
“Em nova localidade, porém, a magistrada poderá retomar atividades sem qualquer pecha e adotar comportamento mais responsável e sereno, cortês e prudente”, disse o corregedor.
Segundo ele, “o acórdão do Colendo Órgão Especial é coerente, íntegro e claro. Não há vício a ser sanado, portanto”.