Golpe de 1964 e estelionato histórico
Sob o título “O irrefutável golpe de 1964”, o artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira, juiz do Trabalho da 7ª Região (Ceará). O autor presidiu a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) no biênio 2015/2017. Os grifos são do texto original.
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Tenho tido grandes dificuldades de ler e ouvir considerações, nos diversos espaços, públicos ou privados, que negam ou relativizam o golpe civil militar de 1964.
Só em um país que tem colocado na ordem do dia o surrealismo atrelado à agenda da ignorância pode manipular tantos incautos (ilustrados incautos; incautos bacharéis), ao preço de verdadeiros estelionatos históricos, que tentam bancar o negacionismo e o revisionismo até para encontrar razões comemorativas de um período tão nefasto.
Esse tipo de discurso, no entanto, não se sustenta, nem do ponto de vista fático, nem no plano jurídico-formal, aspecto que os juristas tanto prezam (ou deveriam prezar).
Para que se tenha melhor dimensão histórica do ocorrido, é importante lembrar que João Goulart foi eleito vice-presidente juntamente com Jânio Quadros, em 1960. Antes, em 1955, já tinha sido eleito vice-presidente uma primeira vez, com Juscelino Kubitschek, valendo recordar que as eleições de presidente e vice eram SEPARADAS.
Jango chegou a ter mais votos que Kubitschek e na eleição com Jânio sua candidatura não representava uma identidade de pensamento com presidente eleito.
Era esse, no entanto, o modelo que estava em plena vigência no Brasil, ao tempo da Constituição de 1946, uma das mais democráticas que tivemos.
Talvez seja preciso também lembrar que, no curso do mandato, Jânio Quadros renunciou, no segundo semestre de 1961, e os adversários de João Goulart, apesar da legitimidade de sua eleição – e do que estava expresso no art.79 da CF/46, que determina ao vice ocupar a presidência em caso de impedimento vacância- , tentaram emplacar o parlamentarismo ainda em 1961, Emenda essa que foi submetida a plebiscito e derrotada fragorosamente, tendo o povo escolhido e reafirmado sua preferência pelo presidencialismo, o que , àquela altura, em meio à campanha da legalidade, legitimava duplamente João Goulart.
Importante também registrar que, mesmo nesse cenário formal, após a derrota desse golpe branco, caso houvesse razão para qualquer impedimento do presidente legítimo, a possibilidade de impeachment estava colocada na forma dos artigos 88 e 89 da citada Constituição, mas nada, absolutamente nada foi alegado ou proposto a esse respeito no Congresso Nacional.
Por outro lado, às Forças Armadas, pela mesma Constituição Federal, eram reservados os seguintes papeis e dever de submissão hierárquica, como em todos os países democráticos:
“Art 176 – As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, ORGANIZADAS COM BASE NA HIERARQUIA E NA DISCIPLINA, sob a AUTORIDADE SUPREMA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA e dentro dos limites da lei”
“Art 177 – Destinam-se as forças armadas a DEFENDER A PÁTRIA e a GARANTIR OS PODERES CONSTITUCIONAIS, a lei e a ordem”
Qualquer interprete medíocre da Constituição sabe que o juízo sobre os valores insertos no art.177 não cabe ao chefes de Armas, mas ao seu Comandante Supremo, que é o presidente da República, sob pena de total disfuncionalidade dos valores mais caros à democracia .
Tanto é que o art.179 e seu § primeiro estabeleciam:
“Art 179 – Os problemas relativos à defesa do País serão estudados pelo Conselho de Segurança Nacional e pelos órgãos especiais das forças armadas, incumbidos, de prepará-las para a mobilização e as operações militares.
§ 1º – O CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL SERÁ DIRIGIDO PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, e dele participarão, no caráter de membros efetivos, os Ministros de Estado e os Chefes de Estado-Maior que a lei determinar. Nos impedimentos, indicará o Presidente da República o seu substituto.
Mesmo assim, era tamanho o sentimento, por parte do presidente da República João Goulart, de um movimento golpista em curso, que ele sequer acionou os inciso XI e XII do art. 87 da CF/46, que lhe possibilitava, exercendo o comando das F.A. “decretar a mobilização total ou parcial das forças armadas”.
Estava claro pra ele que as Forças Armadas tinham traído a Constituição e abraçado o golpismo, coordenado pelo Departamento de Estado norte-americano, o que hoje não é mais ignorado por ninguém de boa-fé.
A esse respeito, aliás, documentos e documentários hoje de amplo conhecimento revelam a influência do embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, que desde 1962 já planejava uma ação radical contra Jango. Há, nesse mesmo ano, o seguinte diálogo entre ele e John Kennedy, na Casa Branca, já de domínio público, com o seguinte teor:
“John Kennedy: Será que Goulart vai agir?
Lincoln Gordon: Sim, ele pode agir, como Perón fez na Argentina, um ditador populista.
Kennedy: PODEMOS FAZER ALGO CONTRA GOULART?
Gordon: SIM, ACHO QUE PODEMOS.
Kennedy: QUAL SERÁ NOSSA ATITUDE?
Gordon: O fundamental é ORGANIZAR AS FORÇAS POLÍTICAS E MILITARES para reduzir o seu poder e, EM UM CASO EXTREMO, AFASTÁ-LO”.
Não se pode esquecer ainda a famosa Operação Brother Sam, deflagrada em 31 de março de 1964 pelos EUA. As tropas norte-americanas não chegariam ao litoral brasileiro no dia, claro, mas a notícia serviu para intimidar qualquer forma de resistência que, caso ocorresse, aí sim, seria concretizada com apoio material aos militares. Na operação houve deslocamento da frota da Marinha norte-americana estacionada na região do Caribe para o litoral brasileiro. Esse apoio em favor dos golpistas foi solicitado pelo dito embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, com quem as forças golpistas já mantinham contatos há tempos.
E tudo por conta do fantasma criado por Keneddy e Gordon, de que Jango seria um novo Fidel, quando no pós-guerra predominavam no Brasil governos desenvolvimentistas ( de agenda liberalizante), participando da cena política democrática todos os sujeitos e partidos, inclusive os socialistas e comunistas.
A verdade é que os EUA capturaram a democracia brasileira em sociedade com os golpistas que se alinharam a eles. Isto é o que há de concreto.
Quem quiser acreditar em miragens pode continuar acreditando, afinal não está muito em moda a fidelidade a fatos históricos, vide o constrangimento internacional a que estamos sendo submetidos pelo Presidente da República e pelo inacreditável Ministro das Relações Exteriores, a fraudar as origens históricas do nazismo, sendo por conta disso desmentido há dias, no mundo inteiro.
Quanto aos efeitos do golpe (torpe por si, em qualquer regime democrático) o que veio em seguida foi ainda mais cruel.
O jornal El País(ainda sobre documentos históricos revelados) traz matéria a partir de documentos CIA que retratam os anos dos governos Médici/Geisel.
O assunto do telegrama é: “DECISÃO DO PRESIDENTE BRASILEIRO, ERNESTO GEISEL, DE CONTINUAR COM AS EXECUÇÕES SUMÁRIAS DE SUBVERSIVOS PERIGOSOS, SOB CERTAS CONDIÇÕES”.
O memorando, de 11 de abril de 1974 , foi enviado pelo diretor da CIA para o então secretário de Estado Henry Kissinger e dado a conhecer pelo Bureau of Public Affairs do Departamento de Estado dos Estados Unidos.
O relatório começa descrevendo o encontro de 30 de março de 1974 entre o então presidente Ernesto Geisel, o general Milton Tavares de Souza e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o ex-chefe e o novo chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE). Também estava presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente.
Esse relato foi publicado apenas em 2015 e registra que o general Milton foi quem mais falou na mencionada reunião. A parte do relato da CIA aponta: “Descreveu o trabalho do CIE contra a subversão interna durante a administração do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e AFIRMOU QUE MÉTODOS EXTRALEGAIS DEVERIAM CONTINUAR A SER EMPREGADOS CONTRA SUBVERSIVOS PERIGOSOS”.
E continua: “Nesse sentido, o GENERAL MILTON RELATOU QUE CERCA DE 104 PESSOAS, NESSA CATEGORIA, HAVIAM SIDO EXECUTADAS SUMARIAMENTE PELO CIE DURANTE O ÚLTIMO ANO, ou pouco mais de um ano. FIGUEIREDO APOIOU ESSA POLÍTICA E DEFENDEU SUA CONTINUIDADE”.
Há ainda um segundo telegrama da CIA de seguinte teor:
“o presidente [Geisel], que comentou a SERIEDADE E ASPECTOS POTENCIALMENTE PREJUDICIAIS DESSA POLÍTICA, disse que QUERIA REFLETIR SOBRE O ASSUNTO DURANTE O FIM DE SEMANA, antes de tomar qualquer decisão sobre a sua continuidade”.
No dia 1º de abril, Geisel “INFORMOU AO GENERAL FIGUEIREDO QUE A POLÍTICA DEVERIA CONTINUAR, mas que EXTREMO CUIDADO DEVERIA SER TOMADO PARA ASSEGURAR QUE APENAS SUBVERSIVOS PERIGOSOS FOSSEM EXECUTADOS”.
“O PRESIDENTE E O GENERAL FIGUEIREDO CONCORDARAM que, quando o CIE DETIVESSE UMA PESSOA QUE PODERIA SER ENQUADRADO NESSA CATEGORIA, o chefe do CIE deveria CONSULTAR O GENERAL FIGUEIREDO, CUJA APROVAÇÃO DEVERIA SER DADA ANTES QUE A PESSOA FOSSE EXECUTADA”, segue o relatório, cuja última mensagem disponível diz que “O PRESIDENTE E O GENERAL FIGUEIREDO TAMBÉM CONCORDARAM QUE O CIE DEVE DEDICAR-SE QUASE EXCLUSIVAMENTE A COMBATER A SUBVERSÃO INTERNA, E QUE A ATUAÇÃO DO CIE, EM GERAL, DEVE SER COORDENADA PELA GENERAL FIGUEIREDO”.
Link para o documento em inglês no site do Departamento de Estado
https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99
Há uma curiosidade nesse último telegrama: Apesar de o sigilo do documento ter caído, dois parágrafos, que somam no total 19 linhas, foram mantidos em segredo, segundo os pesquisadores. A pergunta é: por que?
Para quem, do alto de uma suprema irracionalidade, possa ainda dizer que eram terroristas e mereciam morrer (serem executados, sem julgamento, o que seria de estarrecer, ainda que admitida a premissa (só PARA ARGUMENTAR), jamais poderia o Estado brasileiro agir assim.
Primeiro porque até mesmo na “Constituição” pós golpe vedava as penas de morte e perpétua (§ 11 do art.150 do texto de 1967/69).
Além do mais, o Brasil incorporou ao ordenamento jurídico, na década de cinquenta, a Convenção de Genebra, que mesmo na lógica desse raciocínio absurdo, em seu art. 3º estabelece:
Art.3º No caso de conflito armado que não apresente um carácter internacional e que OCORRA NO TERRITÓRIO DE UMA DAS ALTAS PARTES CONTRATANTES, CADA UMA DAS PARTES NO CONFLITO SERÁ OBRIGADA, pelo menos, a aplicar as seguintes disposições:
1) AS PESSOAS QUE NÃO TOMEM PARTE DIRETAMENTE NAS HOSTILIDADES, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas E AS PESSOAS QUE TENHAM SIDO POSTAS FORA DE COMBATE POR DOENÇA, FERIMENTOS, DETENÇÃO OU POR QUALQUER OUTRA CAUSA, serão, EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS, TRATADAS COM HUMANIDADE, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.
PARA ESTE EFEITO, SÃO E MANTER-SE-ÃO PROIBIDAS, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas:
a) AS OFENSAS CONTRA A VIDA E A INTEGRIDADE FÍSICA, especialmente o HOMICÍDIO SOB TODAS AS FORMAS, MUTILAÇÕES, TRATAMENTOS CRUÉIS, TORTURAS E SUPLÍCIOS;
b) A tomada de reféns;
c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;
d) As CONDENAÇÕES PROFERIDAS E AS EXECUÇÕES EFECTUADAS SEM PRÉVIO JULGAMENTO REALIZADO POR UM TRIBUNAL REGULARMENTE CONSTITUÍDO, QUE OFEREÇA TODAS AS GARANTIAS JUDICIAIS RECONHECIDAS COMO INDISPENSÁVEIS PELOS POVOS CIVILIZADOS.
2) Os feridos e doentes serão recolhidos e tratados. Um organismo humanitário imparcial, como a Comissão da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às Partes no conflito.
Partes no conflito esforçar-se-ão também por pôr em vigor por meio de acordos especiais todas ou parte das restantes disposições da presente Convenção.
Não há nada, portanto, absolutamente nada que sustente a legitimidade do golpe de 1º de abril de 1964 (não foi em 31 de março) e a tortura que veio em seguida, no tempo em que a tortura contra as mulheres passava desde o estupro a arrancar mamilos, com alicate, e colocá-las em “banhos de sol”, ao sol mais quente, sem roupa.
Quem naturaliza as mortes reveladas e tem algum tipo de prazer nos relatos de mulheres e homens torturados, estes no pau de arara, levando choque nos testículos e com fio eletrificado passando pela uretra, tem boa oportunidade de curar o ódio essencial de suas almas e o embotamento que anuvia a manipulação histórica.
Quem é incapaz de tomar contato com essa realidade muito menos perceberá que o golpe no Brasil enterrou a agenda de Jango (educação e reforma agrária), impedindo que o Brasil hoje, cinquenta anos depois, se tornasse até mesmo um país rico e muito menos desigual, ao contrário do que é e do que continua sendo, um país periférico, dependente e capacho (mais que nunca) dos EUA, entregando suas riquezas, segredos estratégicos e até a dignidade simbólica que resta, como no caso dos vistos sem reciprocidade (outra vergonha contemporânea).
Com um crescimento econômico consistente e com educação certamente não estaríamos nem falando em déficit de Previdência e de desarranjo nas contas públicas.
Não fosse tudo isso, a ditadura foi ainda um poço de outras improbidades e malfeitos, como em matérias amplamente divulgadas na mídia:
a) CASO COROA BRASTEL – Delfim Netto sofreu acusação direta de corrupção, dessa vez como ministro do Planejamento, ao lado de Ernane Galvêas, ministro da Fazenda, durante o governo Figueiredo
b) Sérgio Fleury, proeminente nos anos de chumbo, foi acusado pelo Ministério Público de associação ao tráfico de drogas e extermínios. Apontado como líder do Esquadrão da Morte.
c) vários governadores biônicos (não eleitos e nomeados pelo ditador de plantão) envolvidos em falcatruas, como Maluf (caso LUTFALLA ) e Antonio Carlos Magalhães ( caso da Magnesita);
d) os subornos da General Electric no Brasil, admitidos por Gerald Thomas Smilley, para vender locomotivas à estatal Rede Ferroviária Federal, nunca apurados;
e) Caso da Agropecuária Capemi, empresa dirigida por militares, contratada para comercializar a madeira da região do futuro lago de Tucuruí, em que pelo menos US$ 10 milhões teriam sido desviados para beneficiar agentes do SNI. O jornalista Alexandre von Baumgarten, colaborador do SNI, que tinha conhecimento dos fatos, foi assassinado em 1982, pouco depois de publicar um dossiê acusando o general Newton Cruz de planejar sua morte.
Isso para não falar da relação com as empreiteiras…
São apenas exemplos. Em comum, nenhuma investigação consistente e que tenha lavado a lugar algum. Afinal, era a ditadura e os seus ditadores, que silenciavam e matavam.
Em resumo, 1964 não só foi um golpe, como as mãos de seus agentes estão manchadas de sangue para todo o sempre.
Por insistente que sejam os devaneios e os argumentos de ESTORIADORES e as montagens de fakenews, esses são os fatos, que não podem ser adulterados nem recontados.
IRREFUTÁVEL GOLPE DE 1964!
Inconcebíveis as sandices de 2019, que tentam relativizar esse fato histórico torpe.
Tenho vergonha de 31 ou 1º de abril de 1964 e de quem professa essa data como dia santo!
Ditadura e tortura nunca mais.