‘Os juízes têm direito à liberdade de pensamento como qualquer cidadão’

Sob o título “Juízes menos cidadãos que os demais!”, o artigo a seguir é de autoria de Edu Perez de Oliveira, juiz de direito do Tribunal de Justiça de Goiás, e José Herval Sampaio Júnior, presidente da Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte e professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte.

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“O cidadão que se ergue, propugnando, contra o poder delirante, a liberdade extorquida, não representa uma vocação do seu egoísmo: exerce verdadeira magistratura. Os aduladores da opressão, os eunucos do cativeiro satisfeito arguirão de perturbadora a voz, que protesta. Mas a verdade é que ela trabalha pela pacificação, é que ela apostaliza a ordem, curando as chagas abertas pela força com o bálsamo da confiança na lei, apontando aos irritados, acima das violências administrativas e das violências populares, a onipotência imaterial da justiça.”

RUY BARBOSA (Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro, DF Obras Completas de Rui Barbosa. V. 19, t. 3, 1892. p. 95)

 

A higidez da imagem das instituições justifica o sacrifício, em abstrato, da liberdade de expressão e pensamento dos juízes como cidadãos?

Em 4 de julho de 1776, na cidade de Filadelfia, os assim chamados Fundadores, representantes das treze colônias britânicas, firmaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, cindindo suas relações com a Grã-Bretanha.

De todo o texto, extrai-se essa famosa passagem:

Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão vida, liberdade e a busca da felicidade. (tradução livre e grifo nosso)

Não muito diferente é o trecho do Manifesto de 1º de Agosto de 1822, assinado pelo Imperador Dom Pedro I:

“Então as Províncias Meridionais do Brasil, coligando-se entre si, e tomando a atitude majestosa de um povo que reconhece entre seus direitos os da liberdade, e da própria felicidade lançaram os olhos sobre mim, o filho do seu Rei, e seu amigo (…)”.

A liberdade é um direito autoevidente, e um direito tão caro que muitos deram, e ainda dão, sua vida para garanti-la para si e para os outros.

Ao elaborar o texto, os Fundadores dos EUA baseavam-se não só no conhecimento jurídico da época, mas também no cristianismo e na filosofia grega antiga, notadamente nos estóicos.

Esse contato dos Fundadores com os estóicos estendeu-se para além de Cícero, sendo Epicteto, que fora um escravo, o favorito de Thomas Jefferson, redator da Declaração. Desse modo, o estoicismo foi um ponto importante para a redação da Declaração, assim como a visão antiga sobre o que era a escravidão (CONKLIN, 2015, p. 236).

Na antiguidade, a escravidão era um conceito distinto daquele do comércio escravagista europeu da época, resumindo-se, grosso modo, à antítese da liberdade. Para os gregos e romanos antigos um escravo não poderia viver uma vida virtuosa, faltando-lhe autonomia necessária para tanto.

É nesse sentido que os Fundadores empregavam essa visão clássica do que era a escravidão em contraposição à liberdade quando se opunham ao Império Britânico, decorrendo daí a inserção textual de que a tirania a que eram submetidos ameaçava os direitos inalienáveis do homem: a vida, primeira lei da natureza, a liberdade, tal qual inserta na visão dos antigos, que seria não só a oposição à escravidão, mas também à dominação pelo mais forte, e o direito à busca da felicidade.

Nesse contexto da filosofia antiga, a tirania se torna uma ameaça à busca pela felicidade, porque tal busca confunde-se com a busca pela virtude, e não é possível fazê-lo na condição de escravo ou oprimido, ou seja, sem autonomia. (CONKLIN, 2015, p. 236/237).

A historia da humanidade, portanto, é a história da luta contra a tirania, a ditadura e o totalitarismo e pela vitória da liberdade: de viver, de amar, de ir e vir e também de pensar e dizer o que se pensa.

Ninguém pode ser feliz se não for livre.

Por isso, recebemos com espanto a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça, por seu atual presidente, o Ministro Dias Toffoli, pretende regulamentar o uso das redes sociais pelos juízes, já tendo designado um grupo de trabalho. [1]

Nas palavras do Ministro:

“Nós, enquanto instituições, temos que ter nossos parâmetros de conduta. Isso não significa mordaça, isso não significa censura, isso significa defesa das nossas carreiras, isso significa defesa das nossas instituições. Os juízes não podem ter desejo. O seu desejo é cumprir a Constituição e as leis”.

A ideia é que esse grupo de trabalho deverá apresentar um relatório e propostas de uso de redes sociais pelos magistrados à Comissão Permanente de Eficiência Operacional e Gestão de Pessoas.

Por mais que se tenha como nobre o possível escopo da parametrização presente no ato que criou o grupo, não se delimitou de modo muito claro e talvez isso ocorra porque quando se trata de limitar a liberdade expressão e pensamento, que não é absoluta, esta deva se fazer em cima de casos concretos, correndo-se o risco de não se conseguir em alguns casos, ficando realmente para a reparação.

Mas, para os juízes deve valer essa limitação prévia em razão de sua função judicante? E sua qualidade de cidadão, sempre deve ser olvidada? Para manter a independência funcional, vale tudo? [2]

Em suma, pretende-se limitar ainda mais a já limitada liberdade dos magistrados, cujos deveres estão regulados pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, e são bastante claros.

As redes sociais são espaços para troca de ideias, um intercâmbio positivo que reduz distâncias e amplia o conhecimento humano. Não são tribunais, não são espaços estatais, mas privados e têm os limites próprios da cidadania e os juízes como qualquer cidadão estão a ela vinculados.

Recentemente já se falou do risco à liberdade de imprensa. [3] Agora o risco é maior, porque se trata de calar os juízes. Se ambos, imprensa e humoristas, ou quem quer que seja, tenha seu direito ameaçado, poderá recorrer ao Judiciário.

Mas se os próprios juízes não tiverem liberdade, não haverá onde se socorrer. É o pensamento de Ruy Barbosa, ao asseverar que “[…] até onde forem as contingências da liberdade violada, até aí forçosamente há de chegar a tutela jurídica dos tribunais.” (Rio de Janeiro, DF, Obras Completas de Rui Barbosa. V. 19, t. 3, 1892. p. 171)

Como dito, já existe uma série de normas de conduta que devem ser seguidas pelos magistrados. Se a manifestação dos juízes as ferir, existe todo um procedimento administrativo hábil a sancioná-los, devendo ser instaurado, em cada caso concreto, o devido processo legal, punindo-se, ao final, se for o caso, e não a todos, como, mais uma vez, pode vir um ato, em abstrato, a tolher direito dos magistrados.  [4]

O que parece, contudo, é que a liberdade de expressão dos magistrados tem incomodado. Não porque cometam ilícitos ou excessos, o que se dá em casos pontuais, mas porque a Magistratura concursada, que forma a base dessa pirâmide, (ainda) é respeitada nos milhares de municípios por onde se espalha. A opinião do juiz é ouvida e considerada por muitos.

Agora surge o risco potencial da censura, não bastasse a constante criação de novos deveres diários aos juízes em uma carreira que há muito deixou de ser atraente, inclusive na remuneração e carga de trabalho, vez que há opções melhores e menos cobradas.

Ser juiz é a segunda profissão mais estressante, perdendo apenas para médicos de UTI. [5]

Com essa vedação à livre expressão tem altas chances de chegar ao primeiro lugar, uma vez que sequer em seus momentos de interação social o magistrado poderá parar de ser magistrado.

Nunca desligar da toga é um castigo, não é defesa da carreira. É submeter o indivíduo a uma sensação de constante vigilância, de medo, de receio de ser arrestado a qualquer momento, como em um regime totalitário.

Já dizia Eduardo Couture, que “o dia em que o juiz tiver medo, nenhum cidadão dormirá tranquilo”.

Medo é o que sentem os magistrados, vendo dia após dia ruir a Magistratura sob o peso inexorável da burocracia, das limitações administrativas e das ameaças, carregados e mal reconhecidos, como cavalos de Schilda. A insegurança impede qualquer estabilidade emocional.

Ora, para toda e qualquer conduta inadequada do magistrado, seja no mundo físico, seja nas redes sociais, já existe previsão de sanção e que ela ocorra sempre em concreto e nunca em abstrato.

Por exemplo, se ofende alguém, há os crimes contra a honra; se critica a decisão de um colega, há punibilidade na LOMAN, e se, de qualquer modo, age de forma parcial, os códigos preveem a arguição de suspeição para afastá-lo do processo.

Assim, por qualquer ângulo que se observe a norma que se pretende criar não é só desnecessária, também é perigosa à democracia, por suprimir um direito auto-evidente: a liberdade, e que nesse pequeno texto se busca defender a todo custo.

Invoca-se aqui a memória do magistrado Antônio Bento (1843-1898), transcrevendo trecho do relatório do chefe de polícia que foi investigar uma tentativa de assassinato ao juiz:

“Consultei particularmente as pessoas consideradas de ambas as parcialidades políticas; ouvi alguns dos desafeiçoados do juiz, e de todos tive a seguinte resposta:

– O Dr. Antonio Bento é honesto, é justiceiro, é bem intencionado, é isento de paixões políticas. Acrescentavam alguns: – mas imprudente, e arrebatado. Na verdade ele não tem a prudência e moderação que se deve desejar; diz o que pensa e o que sente, com franqueza um tanto rude; revolta-se contra os abusos, e ataca-os de frente; quer enfim reformar em um dia o mal de muitos anos; estes defeitos, em parte devidos a sua inexperiência de moço: hão de desaparecer ou minorar, e com a prática há de ele reconhecer que a energia não é incompatível com a prudência, e que os males crônicos demandam tempo para o curativo.

O Dr. Antonio Bento tem alguns desafeiçoados, entre eles há quem procure a todo transe desconceituá-lo e expô-lo ao ódio público, mas tem também grande número de sustentadores, entre os quais constam-se pessoas muito distintas por seu critério e bem merecida influência local” (AZEVEDO, 2007).

Antônio Bento tinha alguns “péssimos” hábitos, como o de aplicar a lei a todos, inclusive aos poderosos da época, de dizer o que pensava e, horror dos horrores, ser defensor da causa abolicionista, pois vigia ainda o regime de escravidão no Brasil. Era odiado pelo coronelismo e pelos poderosos, assim como pelos donos de escravos.

Em razão de sua atuação em favor dos escravos enquanto juiz, como ao indicar companheiros abolicionistas para estipular preços de alforria, e por sua posição “polêmica”, se indispôs contra o poder político e econômico e perdeu o cargo em 1877, vindo a fundar o Movimento dos Caifazes, responsável pela libertação e encaminhamento para quilombos de inúmeros seres humanos escravizados, alguns, inclusive, recepcionados em sua própria casa.

A perseguição encetada contra Antônio Bento, portanto, não só de nada adiantou como acelerou o processo de abolição. Fosse ele um mero repetidor da lei sem desejos, e não um intérprete crítico, haveria muito mais sofrimento no mundo.

Daí, inclusive, a importância do texto constitucional que prevê a vitaliciedade do juiz, para que não seja alvo de perseguições dessa natureza ao aplicar a lei contra os que se acham acima dela.

Ora, se o juiz deve ser imparcial não só nos processos, mas também nas redes sociais, não dista o dia em que não poderá mais torcer por um time de futebol, ou será vedado de professar sua religião, afinal, não pode ter desejos, não pode ter liberdade: deve ser uma máquina de repetir precedentes. As distinções de atuação do juiz e do cidadão que também é juiz tem que ser evidentes e quando expostas com clarezas e nos limites legais já existentes, são mais que suficientes.

Enquanto se demanda que os juízes façam parte de sua comunidade, afinal, a Constituição exige que morem na comarca, que conheçam o mundo onde vivem, contraditoriamente esses mesmos magistrados são ameaçados de punição por conviverem com outros seres humanos em redes sociais.

Nem a um criminoso convicto se nega acesso à sociedade, à vida política natural do ser humano. Lembremos: não é possível ser feliz sem ser livre.

As críticas fazem parte da vida social e são essenciais a qualquer regime democrático. Somente regimes totalitários ou ditatoriais cassaram a liberdade de expressão.

Já dizia Ruy Barboa, o Águia de Haia:

“Há perigos e males na liberdade, mas a sua compensação é infinitamente superior às efêmeras e aparentes vantagens da compressão, qualquer que seja o tom paternal da sua brandura, e o tino dos seus agentes.” (Obras Completas de Rui Barbosa. V. 10, t. 2, 1883. p. 16)

Qualquer alternativa à liberdade será sempre muito pior.

Normas já existem para sancionar qualquer excesso. Partir do pressuposto, como tem ocorrido, de que o magistrado está sempre errado e deve cada vez mais ser isolado, castrado, suprimido, como um eunuco moral e espiritual, é um risco à República, e os mais afetados com isso serão os brasileiros, que poderão contar apenas com uma Justiça insípida, eco de embolorados livros que seguiram na contramão da história e em nada se relacionam com a realidade.

O ministro Dias Toffoli é republicano. Conhece o valor da democracia e da força das instituições, notadamente do Judiciário e de sua independência para valorar como se deve o respeito à liberdade, logo, mesmo tendo a missão de lutar para preservar a imagem das instituições, em especial as da Justiça, assegurará, aos magistrados, o seu patente direito à liberdade de pensamento, não absoluto, contudo, não menor do que de qualquer outro cidadão!

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[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/05/07/toffoli-defende-parametros-de-conduta-para-manifestacoes-de-juizes-nas-redes-sociais.ghtml

[2] http://www.novoeleitoral.com/index.php/artigos/hervalsampaio/915-ser-juiz-nao-retira-cidadania-direito-de-posicionar-em-abstrato-temas-sociais

http://www.novoeleitoral.com/index.php/artigos/hervalsampaio/1193-os-magistrados-nao-sao-subcidadaos-mesmo-com-as-limitacoes

[3]  https://www.mementomori.blog.br/blog/livre-imprensa-democracia-e-justica) e de expressão dos humoristas

https://www.mementomori.blog.br/blog/quando-ate-os-palhacos-forem-calados

[4] http://www.novoeleitoral.com/index.php/artigos/hervalsampaio/1162-que-se-puna-um-a-um-e-nao-a-todos 

[5] http://www.amc.org.br/novo/2019/04/07/especialista-aponta-a-profissao-do-juiz-como-a-segunda-mais-estressante/

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BIBLIOGRAFIA:

Alunos online. Caifazes e a luta pela abolição no Império. https://alunosonline.uol.com.br/historia-do-brasil/caifazes-luta-pela-abolicao-no-imperio.html. Acesso em 8.5.2019, às 23h52

AZEVEDO, Elciene. Antonio Bento, homem rude do sertão: um abolicionista nos meandros da justiça e da política. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 123-143, 2007

Câmara Federal. Proclamação de 1º de Agosto. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/procla_sn/anterioresa1824/proclamacao-41282-1-agosto-1822-575736-publicacaooriginal-99010-pe.html, acesso em 8.5.2019, às 20h12

CONKLIN, Carli N. Origins of the Pursuit of Happiness, 7 Wash. U. Jur. Rev. PP. 195-262 (2015). Available at: http://openscholarship.wustl.edu/law_jurisprudence vol7/iss2/6

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 2.04.2019, 20h

Encyclopaedia Britannica https://www.britannica.com/topic/Declaration-of-Independence#ref338515 acesso em 8.05.2019, às 20h.

SENECA, Lucius Annaeus. Moral letters to Lucilius. Letter 71: On the supreme good. https://en.wikisource.org/wiki/Moral_letters_to_Lucilius/Letter_71. Acesso em 08.05.2019, às 20h35.