Lava Jato não deve alterar o trabalho da Justiça Eleitoral

“A Justiça Eleitoral só julgará ‘crimes comuns’ se houver conexão ou continência entre um crime eleitoral e um crime comum. É rara a ocorrência desse vínculo. Os inquéritos da Lava Jato não alterarão o volume de trabalho da Justiça Eleitoral, tampouco poderiam justificar a criação de novas varas.”

A avaliação é do procurador regional da República José Jairo Gomes, especialista em Direito Eleitoral.

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Gomes é autor do livro “Direito Eleitoral”, que está na 15ª Edição. Ele atua no Tribunal Regional Federal da 1ª Região e no Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, em Brasília. Foi procurador regional eleitoral em Minas Gerais.

Nesta entrevista, ele também comenta a proposta de criação do Tribunal Regional Federal em Minas Gerais, aprovada nesta segunda-feira (20) pelo Conselho da Justiça Federal. O futuro TRF-6 terá sede em Belo Horizonte e resultará de desmembramento do TRF-1.

“A estrutura do TRF-1 foi pensada para uma realidade completamente diferente da atual, sendo claramente insuficiente para a enxurrada de processos que nele aportam diariamente. Há casos em que a demora no julgamento do recurso é tamanha que chega a tangenciar a negação de jurisdição”, afirma.

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Eis a íntegra da entrevista concedida por e-mail.

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Blog – O julgamento de crimes comuns pela Justiça Eleitoral exigirá mudanças estruturais nessa justiça especializada?

José Jairo Gomes – Há alguns equívocos nesse debate, especialmente no trato de certos institutos processuais penais. A competência criminal da Justiça Eleitoral restringe-se ao processo e julgamento de crimes eleitorais.

Ela só julgará “crimes comuns” (ou seja, da competência da Justiça Estadual ou Federal) em caráter excepcional; isso ocorrerá somente se houver vínculo de conexão ou continência entre um crime eleitoral e um crime comum.

 À luz da legislação atual, é rara a ocorrência desse vínculo. E mesmo quando ele existir, a reunião de processos é facultativa.

De modo que não vislumbro necessidade de “mudanças estruturais nessa justiça especializada”, tampouco tenho como necessária ou imprescindível a criação de vara especializada no âmbito da Justiça Eleitoral.

Blog – A Justiça Eleitoral é eficiente apenas com juízes estaduais?

José Jairo Gomes – Historicamente, os juízes estaduais sempre exerceram algum papel no processo eleitoral, proporcionando-lhe credibilidade e confiança; é inegável a importância que têm para o bom funcionamento da Justiça Eleitoral.

Contudo, eles não ocupam todos os cargos existentes nesse ramo especializado do Poder Judiciário; atuam na primeira instância e preenchem quatro dos sete lugares existentes nos TREs.

Sobretudo no âmbito administrativo, é evidente e incontestável a eficiência da Justiça Eleitoral, especialmente na primeira instância, que é onde o direito de voto é exercido. 

Blog – O volume de inquéritos decorrentes da Lava Jato justifica a criação de novas varas?

José Jairo Gomes – Considerando que o sistema processual penal adotado na Constituição da República é o acusatório, afigura-se equivocada a tramitação de inquérito policial pelo Poder Judiciário.

Para preservar sua imparcialidade, o ideal é que o juiz não tenha contato com o inquérito, devendo a tramitação ocorrer tão somente entre a Polícia Judiciária (Civil ou Federal) e o Ministério Público.

O juiz deve intervir no inquérito de modo excepcional, apenas para garantir o respeito aos direitos fundamentais do investigado, notadamente os concernentes à liberdade.

Nessa perspectiva, os inquéritos da Lava Jato não alterarão o volume de trabalho da Justiça Eleitoral, tampouco poderiam justificar a criação de novas varas.

Blog – A criação de varas especializadas na Justiça Eleitoral para conduzir crimes comuns é uma opção válida?

José Jairo Gomes – É preciso compreender que a Justiça Eleitoral é especializada, e como tal não detém “competência natural” para conhecer e julgar crimes comuns – os quais são afetos à competência das Justiças Estadual e Federal (denominadas Justiça Comum).

A Justiça Eleitoral só poderá julgar crime comum se houver conexão ou continência com crime eleitoral, este sim de sua competência natural e exclusiva.

Note-se que a conexão e continência implicam a reunião para julgamento conjunto de diferentes processos que correm em diferentes juízos ou varas, formando-se, então, um só processo para todos os delitos.

Veja-se, ainda, que a reunião é de “processos”, não de inquéritos policiais. Para definir-se se é ou não caso de reunião de processos é preciso que existam diferentes denúncias formalizadas perante diferentes juízos: denúncia por crime eleitoral na Justiça Eleitoral, e denúncia por crime comum na Justiça Comum.

Diante disso, e considerando que a reunião de processos é facultativa (CPP, art. 80) e, também, que a criação de Vara Especializada na Justiça Eleitoral poderia vulnerar a garantia fundamental do juiz natural (CF, art. 5º, LII – “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”), creio ser conveniente que haja ponderação acerca da real necessidade de criação de tais varas.

Blog – A Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) alega que julgar crimes financeiros, evasão de divisas e lavagem de dinheiro requer expertise. A AMB sustenta que a magistratura como um todo atua firme no combate a corrupção. Como avalia essa divergência?

José Jairo Gomes – Creio que a magistratura Estadual possui plena capacidade técnica de conhecer e julgar quaisquer crimes. São juízes bem formados, responsáveis e contam com larga experiência nos mais diversos quadrantes do Direito. Os juízes das comarcas do interior (que são a maioria) têm contato diário com a matéria criminal, inclusive com o júri.

Some-se a isso o fato de crimes igualmente relevantes para o presente debate serem de ocorrência comum também na esfera da Justiça Estadual, destacando-se entre eles os delitos de falsidade material e ideológica, corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Por outro lado, é ainda preciso considerar que o inquérito policial é realizado pela Polícia Federal.

Blog – O presidente do TRE de São Paulo, desembargador Carlos Eduardo Padin, diz que a Justiça Eleitoral está capacitada para julgar processos criminais. O desembargador Daniel Rocha Sobral, do TRE de Piauí, defende convocar juízes criminais especializados para reforçar as zonas eleitorais. Há muita discrepância na Justiça Eleitoral nos vários estados?

José Jairo Gomes – O debate está em curso. É natural que haja opiniões e entendimentos divergentes. Penso que a Justiça Eleitoral tem, sim, condições técnicas para julgar processos criminais. E onde se entender que não há estrutura ou que esta seja deficiente, é uma boa oportunidade para se melhorá-la.

Mas de qualquer modo, se o juiz eleitoral entender que o processo oriundo da Justiça Comum é demasiado complexo ou que é inconveniente a sua reunião ao processo crime eleitoral que preside, o art. 80 do Código de Processo Penal o autoriza a recusar a reunião dos processos. Além disso, a não reunião de processos conexos ou continentes não gera nulidade, a menos que seja proferida decisão determinando a reunião.

 Blog – Qual é o peso da questão remuneratória? [R$ 5.390,26 pagos a mais ao juiz convocado para atuar na Justiça Eleitoral]

José Jairo Gomes – Na atual conjuntura, o valor da gratificação eleitoral é sem dúvida significativo. Mas creio que o que realmente move a magistratura federal é a intenção de contribuir nessa área, de ter maior participação em nossa democracia.

No fundo, ela percebe que a Justiça Eleitoral é igualmente federal e sente-se alijada dessa atuação.

Sente-se alijada porque tem uma diminuta, quase inexpressiva, participação nos órgãos da Justiça Eleitoral; basta ver que em todos os órgãos e instâncias da Justiça Eleitoral, há apenas a previsão de um único juiz/desembargador federal para atuar nos TREs.

Compreende-se que a presença da magistratura federal na primeira instância da Justiça Eleitoral melhoraria a qualidade da prestação jurisdicional de ambas as Justiças, e isso beneficiaria a sociedade.

 

Blog – O senhor é favorável à criação de novos Tribunais Regionais Federais?

José Jairo Gomes – Sim, sou favorável à criação de novos Tribunais Regionais Federais. Ainda porque a situação atual tornou-se insustentável em alguns locais.

Blog – O presidente do Conselho da Justiça Federal (CJF), ministro João Otávio de Noronha, diz que deveríamos ter hoje algo em torno de oito ou nove TRFs. Há estudos sobre o custo de novos TRFs?

José Jairo Gomes – Atualmente, temos em todo o Brasil cinco TRFs, sediados em Brasília (TRF-1), Rio de Janeiro (TRF-2), São Paulo (TRF-3), Porto Alegre (TRF-4) e Recife (TRF-5).

Essa arquitetura remonta à Constituição de 1988, tendo já se passado mais de trinta anos. Desde então houve muitas mudanças; houve forte interiorização da Justiça Federal, um aumento frenético da primeira instância, o que levou ao aumento exponencial dos processos.

Creio que tem razão o ministro João Otávio Noronha quando diz que deveria haver maior número de tribunais federais. E isso a bem da população.

Certamente, o ministro está preocupado com a boa prestação jurisdicional, com a confiança da sociedade no Poder Judiciário (que é essencial em um regime democrático) e com a imperiosa necessidade de a jurisdição estar mais próxima das pessoas de modo a facilitar-lhes o acesso à Justiça.

É claro que a criação de novos tribunais envolve custos. Mas além destes não serem muito elevados, pois a estrutura dos tribunais federais é enxuta, há inúmeras outras vantagens que proporcionariam.

Blog – Como avalia a proposta aprovada pelo Conselho da Justiça Federal de criação de um TRF em Minas Gerais?

José Jairo Gomes – Ao que se sabe, terá custo zero (sem aumento de gastos), pois resultará do desmembramento do TRF-1, com um rearranjo administrativo em que haverá a conversão de vagas de juiz federal substituto em 18 vagas de desembargador federal, concentração de serviços de secretaria, ocupação de prédio e estrutura já existentes.

Os custos, portanto, já estão contemplados no orçamento da Justiça Federal.

Blog – O ministro Noronha defende que não sejam criadas novas varas até que a estrutura seja revista para atender melhor os lugares onde há excesso de demanda. Há estudos para essa revisão?

José Jairo Gomes – Creio, sim, que haja estudos realizados no âmbito administrativo dos tribunais e do CJF, que é o órgão central da Justiça Federal. Inclusive, discutem-se soluções para se enfrentar a atual realidade orçamentária.

Blog – O TRF-1 é um tribunal com acúmulo de processos. Em 2015, uma inspeção do CNJ encontrou recursos não julgados numa garagem. Qual é a situação atual?

José Jairo Gomes – Acredito, e não estou sozinho, que o TRF-1 deve ser repensado, desmembrado. Isso não só a bem das pessoas físicas e jurídicas que se encontram sob sua jurisdição, como também em prol do acesso e da efetividade da jurisdição. Basta ver que esse tribunal jurisdiciona 13 Estados e o Distrito Federal – no total, 14 unidades federativas.

Sua estrutura foi pensada para uma realidade completamente diferente da atual, sendo claramente insuficiente para a enxurrada de processos que nele aportam diariamente. Há casos em que a demora no julgamento do recurso é tamanha que chega a tangenciar a negação de jurisdição.

Outro dia tive notícia do julgamento de um processo em que o parecer foi feito pelo Ministro Gilmar Mendes, quando este ainda era Membro do Ministério Público Federal.

Eu mesmo participei de uma sessão em que foi apreciado um processo de competência originária pelo crime do art. 149 do CP (redução a condição análoga à de escravo) que demorou cerca de dez anos apenas para ser instruído.

Na área criminal é frequente a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva estatal pela demora no julgamento. A verdade é que por mais que os Desembargadores Federais se dediquem aos processos, não conseguem vencer o grande volume. Então, é preciso desmembrar o tribunal.

Já se iniciou um processo de descentralização com a criação de Turmas Regionais em Belo Horizonte/MG, Juiz de Fora/MG e Salvador/BA. Entretanto, essa iniciativa foi muito tímida, pois as turmas têm competência limitada à matéria previdenciária. Ideal é que haja uma efetiva descentralização, dotando-se as turmas regionais de competências em outras áreas relevantes como criminal, improbidade administrativa, meio ambiente, administrativo.

Blog – Qual é o peso dos recursos provenientes de Minas Gerais no acervo do TRF-1?

José Jairo Gomes – O peso dos recursos provenientes de Minas Gerais é enorme. Basta ver que esse estado responde, sozinho, por cerca de 35% de toda a movimentação dos processos do TRF-1.

Blog – Em julho, a Emenda Constitucional 73, que prevê a criação de quatro novos TRFs, completa seis anos de suspensão por decisão monocrática do então presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa. Ele afirmou, na época, que as entidades da magistratura “participaram de maneira sorrateira da aprovação da emenda”.  Como vê, à distância, o episódio? 

José Jairo Gomes – Em um regime democrático, há um quê inexplicável em decisões monocráticas dessa natureza. Afinal, a Emenda Constitucional 73 tramitou demoradamente nas Comissões das Casas Legislativas, foi submetida a intenso debate público, foi exaustivamente discutida, votada em dois turnos no Senado e em dois turnos na Câmara dos Deputados, sendo, ao final, aprovada por três quintos dos votos dos membros de cada Casa e promulgada pela Mesa do Congresso Nacional.

É incrível que uma decisão monocrática, prolatada solitariamente por um único magistrado, possa ter efeito tão devastador no processo democrático de positivação normativa. Seria diferente se a decisão emanasse do órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal.

Dizer que houve participação sorrateira das entidades da magistratura é pretender desqualificar as entidades que democraticamente representaram os interesses de seus associados. Não se trata, por óbvio, de fundamento válido.

Blog – Em 2013, o desembargador Mário César Ribeiro, então presidente do TRF-1, resumiu a posição dos presidentes dos cinco TRFs:  “Nós identificamos que há soluções mais viáveis para o Estado, sem criar todo um aparato, toda uma estrutura gigantesca, e com um gasto muito menor para os cofres públicos”. Hoje, diante da escassez de recursos, essa avaliação ainda se sustenta?

José Jairo Gomes – Em 2013! O Desembargador Mário César Ribeiro se aposentou em novembro de 2018. Com todo respeito, sua afirmação revelou-se retórica.

Afinal, passados seis anos, é de se perguntar: onde estão as “soluções mais viáveis” a que ele se referia?

O TRF-1 criou umas poucas turmas descentralizadas com competência limitada à matéria previdenciária, processos que podem ser julgados à distância.

Apesar da tímida descentralização, a presença do tribunal não é efetivamente percebida nos poucos locais em que instaladas as turmas descentralizadas.

Para ser uma “solução viável” e eficiente, é preciso que a descentralização abranja matérias sensíveis para a comunidade, em áreas relevantes como a criminal, a de improbidade administrativa, a ambiental, a administrativa.

Veja-se, por exemplo, os desastres ambientais ocorridos em Mariana e Brumadinho; é incrível que as pessoas envolvidas nessas questões tenham que viajar a Brasília para discuti-las e defender seus direitos.

Já passou da hora, portanto, que as tais “soluções mais viáveis” sejam real e efetivamente implementadas.