‘Juiz ou governante não podem invocar as próprias noções de moralidade’
Sob o título “Shakespeare e o Governador”, o artigo a seguir é de autoria de Tarcísio Corrêa Monte, juiz federal, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha na Espanha.
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Algumas palavras parecem ser eternas: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que todos são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”
Quando o mais novo representante no Segundo Congresso Continental das 13 Colônias elaborou esse texto na Filadélfia em 1776, ele contava somente com 33 anos de idade.
Criado próximo às montanhas Blue Ridge, Thomas Jefferson adorava o lugar onde nasceu, e quando ergueu seu próprio rancho, ele o situou no cume de uma montanha. Era um local pouco funcional, mas ele disse: “aqui posso cavalgar acimas das tempestades … ver a natureza, contemplar suas nuvens, a chuva e o trovão”.
Ao ler os jornais recentemente, se nota que, infelizmente, no entanto, não parecem ter sido essas as inspirações filosóficas do governador do Rio de Janeiro quando do seu recente voo acima das montanhas.
Todos os jornais reportaram que tiros desferidos do helicóptero em que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, estava a bordo no último 4 de maio de 2019 em Angra dos Reis alvejaram uma espécie de tenda que é costumeiramente utilizada por religiosos para rezar, conforme residentes locais disseram.
O político postou naquele dia um vídeo em que se apresenta dentro da aeronave, declarando a deflagração de uma operação da Polícia Civil nas favelas da localidade.
“Vamos botar fim na bandidagem”, afirmava ele. Aparece então um policial de costas desferindo uma saraivada de tiros sobre uma pequena tenda azul situada no meio do mato, no cume de uma colina (Monte do Campo Belo). Segundo residentes, ela é usada como ponto de uso para cristãos, que oram no local.
A utilização de helicópteros para desferir rajadas fere norma publicada em outubro pela suprimida Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, que determinava balizas para a atuação das polícias fluminenses durante suas atividades.
A norma não proíbe que agentes disparem de helicópteros, mas determina que os tiros só sejam dados quando forem estritamente imprescindíveis para amparar vidas.
Também destaca que devem ser feitos tiros intermitentes, jamais rajadas, e que essas atuações não devem ser realizadas em bairros superpovoados.
Foi uma ordem da Justiça que ordenou ao Estado, então sob Intervenção Federal na Segurança, elaborar uma estratégia para diminuir o perigo de lesão aos Direitos Humanos durante as incursões.
A presença do governador no ato em Angra foi mencionada em uma denúncia enviada à Organização das Nações Unidas pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro).
Importante ressaltar, nesse contexto, que a atuação de um policial efetuando disparos de fuzil a esmo do alto de uma aeronave não está amparada pelo nosso ordenamento jurídico.
Basta uma leitura rápida dos artigos 23 e 25 do Código Penal para se verificar que no vídeo divulgado não havia situação de legítima defesa ou de estrito cumprimento do dever legal. Em nenhum momento se mostra um uso moderado dos meios necessários para repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, a um direito.
Para continuar no que se poderia chamar no mínimo de uma falta de comedimento, o governador se hospedou com a família logo após os fatos no Hotel Fasano, cuja diária mais barata custa, por pessoa, em torno de R$ 1.600.
O governador se complicou para responder se estava pagando do próprio patrimônio ou se aceitara oferta de alguém para se hospedar no hotel. Limitou-se a dizer que não era o governo do Estado que estava custeando. Mas não se quis mencionar da forma mais transparente possível o nome de quem estava pagando pelos valores.
Apesar de todas as tentativas recentes de dar um colorido ideológico ao tema, não se podem esquecer as palavras do Nobel de Economia e Doutor pela Trinity College de Cambridge no Reino Unido, o Professor Amartya Sen, que em seu livro “A ideia de Justiça”, ensina que os “os direitos humanos são pretensões éticas constitutivamente associadas à importância da liberdade humana, e a solidez de um argumento apresentando determinada pretensão como direito humano deve ser avaliada pelo exame da discussão racional pública, envolvendo uma imparcialidade aberta. Os direitos humanos podem servir de motivação para muitas atividades diversas, desde a legislação e a implementação de leis adequadas até a mobilização de outras pessoas e a agitação pública contra violações de direitos”.
Interessante que, recentemente, o governador do Rio de Janeiro informou em seu curriculum vitae cursar doutorado em Ciência Política na UFF (Universidade Federal Fluminense), com parte dos estudos na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Porém, ele nunca teria estudado na instituição norte-americana e sequer pleiteado concretamente o intuito de estudar no exterior.
Sem entrar na polêmica, com a devida vênia, vale aqui a lição do Professor de Harvard e colega de Amartya Sen na famosa Academia de Massachusetts, Dr. Michael J. Sandel, que em seu livro Justiça afirma: “como podemos saber se nossos argumentos políticos atendem aos requisitos da razão pública, devidamente despojados de qualquer fundamentação em conceitos morais ou religiosos? ”
Quando participamos de debates políticos na condição de cidadãos, devemos obedecer a algumas limitações.
Com base em Rawls, ele afirma que o juiz ou o governante não podem invocar as próprias noções de moralidade, tampouco os ideais e virtudes da moralidade geral. Esses devem ser considerados irrelevantes. Não se podem invocar visões religiosas ou filosóficas próprias, sem se ater aos argumentos que se espera que todos os cidadãos devam aceitar.
E isso vale mesmo caso haja alguma parte da população ou do eleitorado que concorde com práticas heterodoxas em atividades policiais, ou até mesmo snipers em helicópteros, à semelhança do juiz Dredd.
Criado no Reino Unido por John Wagner e Carlos Ezquerra, Dredd é um vigilante de cerca de 120 anos no futuro, que trabalha como juiz. Entretanto, num ambiente ficcional de ultraviolência, o juiz desempenha os cargos de polícia, juiz, júri e executor. Não parece, no entanto, ser essa ainda a realidade do Brasil.
Nesse contexto, pois, não só o Direito explica a complexidade não recôndita da vida. Na tragédia shakespeariana Romeu e Julieta, escrita entre 1593 e 1594, o maior gênio da língua inglesa trata de vários dramas humanos através das falas dos seus personagens. Assim que, por exemplo, ante a emoção e o fascínio demasiados de Romeu para atingir seus desígnios, o Frei Lourenço, antevendo consequências trágicas, pregava moderação e reflexão quando dizia:
“Essas vontades violentas tem um fim violento e morrem no seu triunfo; assim como o fogo e a pólvora que ao beijar-se, se consomem. ”
Do mesmo modo, tanto na atividade de juiz como na de político, sabe-se que é não recomendável decidir com base em arrebatamentos e entusiasmos irrefletidos apenas. Ímpeto puro insinua inconsequência.
No fim das contas, mais vale agir com a razão, prudência e sensatez, quando existem vidas humanas em jogo.