‘Desqualificar agentes é técnica de defesa da macrocriminalidade’, afirma juiz
Sob o título “Erro, que erro?”, o artigo a seguir é de autoria do juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, do Recife (PE).
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O país despertou nos últimos dias com candentes noticiários acerca de conteúdos vazados, a partir de conversas privadas de dignitários da República envolvidos nas ações persecutórias da denominada Operação Lava Jato, a qual vem ineditamente desnudando enormes aparatos criminais relacionados com a prática da corrupção sistêmica no Brasil.
Dessas conversas privadas trazidas a público até aqui, sobre terem sido capturadas por meio de ação também ilícita (hacker), ex-vi do art. 5º, inc. XII, da Carta Política da Nação, e por obra de fontes que se mantêm caprichosamente ocultadas –vale salientar que a Constituição Federal não admite o anonimato, de acordo com o seu art. 5º, inc. IV–, nada, absolutamente nada, a rigor técnico, se pode inferir como irregular de modo a justificar tamanho burburinho que vem sendo feito em escala nacional e, no mesmo trato, amplamente explorado pela imprensa, algo pirandellianamente (“Assim é…, se lhe parece!”).
A propósito, tudo isso não parece ter escapado de uma singular narrativa diversional, a verdadeira etiologia do fenômeno em discussão.
Ora, em tese, todo aquele a quem faleça razão, qualquer que seja o litígio em que se ache envolvido, máxime por crimes submetidos às organizações criminosas, diverte os auditórios e ataca acusadores.
Essa conduta, ora explícita ora dissimulada, faz parte do jogo persecutório na atualidade e o Estado deve manter-se vigilante também na repressão à periferia da macrocriminalidade, tão ou mais insidiosa do que a violação da tutela penal de fundo.
De fato, e com base no que se vem divulgando midiaticamente até aqui, não se pode concluir que houve erro nas conversas privadas em foco.
Do episódio dessas narrativas difusas, as quais, se verdadeiras, assim como se verdadeiros os seus conteúdos, apenas parecem descrever pontos de vista instrumental ou cenários pré-processuais que estão na linha de atuação de todo operador jurídico na esfera do Estado-repressor das delinquências em geral e, particularmente, no combate aos crimes organizados e às respectivas organizações criminosas.
Desse modo, não se divisa erro funcional algum, mas as narrativas em comentário, estas sim, refletem conduta criminalmente censurável que requer apuração diligente e qualificada.
Com efeito, tendo em vista a atual conjuntura política da sociedade brasileira, não parece inverossímil que toda essa ação haja sido desencadeada com espeque na disputa pelo poder, ao mesmo tempo em que se busca desautorizar o movimento conjuntivo da ação repressiva do Estado para devolver-lhe, também no estrato do combate às organizações criminosas, de volta ao seu perfil clássico e disjuntivo. Atavicamente, portanto.
Sobre isto, cumpre analisar que a linguagem clássica utilizável na persecução jurídica dos crimes interpessoais (“fulano matou sicrano por vingança”) já não é a mesma para o enfrentamento das organizações criminosas (diversos crimes ligados por uma fachada de valores empreendedorísticos que congrega múltiplos atores distribuídos de modo objetivo e hierarquizado, mas com propósitos ilícitos de diversas ordens, matizes e configurações), cujo approach exige uma complexa massa de relacionamentos e de cooperações previstas expressamente na Lei nº 12.850/2015, sob autorização constitucional própria [máxima efetividade das normas de segurança pública e da persecução criminal de iniciativa pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, conforme o art. 144, § 7º, da Constituição da República]), massa essa que, na prática, envolve todos os operadores jurídicos da repressão legal à macrocriminalidade com vistas ao desbaratamento de tais cânceres sociais da contemporaneidade e à responsabilização efetiva e não meramente cosmética dos implicados (“orcrims”).
O esforço da legislação de regência, além do mais, vai no sentido constitucional das igualdades, bem como da razoável distribuição da Justiça entre todos os membros da sociedade, considerados sem acepção decorrente de classes ou de pessoas.
Contra as funções normativas dessa legislação especial que objetiva a repressão eficaz às organizações criminosas não se pode opôr meros argumentos de natureza garantista, conquanto se tratem, uma e outros, de ordens epistemológicas inconciliáveis.
Desse modo, o simples garantismo jurídico não desqualifica a natureza mais complexa e profunda das investigações prefiguradas normativamente para o escopo de desbaratar as organizações criminosas em geral.
Observe-se que não é incomum a troca de profissionais da defesa de acusados submetidos a esse tipo de processamento especial, haja vista motivos óbvios de melhor ajustamento das linhas de defesa com as novas orientações persecutórias das quais não se podem desvencilhar os eventuais investigados.
Por isso e para essa finalidade crucial à estabilidade da vida no socius, admite-se inclusive a adoção de técnicas especiais de infiltração, ação controlada, colaboração premial (modelo do plea bargain, originário do common law), tudo isso que, sem exaurir as possiblidades de investigação refinada, haja vista os complexos cenários de uma tal delinquência, marcada sobretudo pela sofisticação e pela resiliência de seus múltiplos modus operandi e pela inserção social de seus agentes, pode precipitar incompreensões e é precisamente nesse espaço cognitivo, ainda em construção, em que se atua no sentido de deslustrar esse alvissareiro advento normativo na Ordem Jurídica brasileira.
Esse cenário pode explicar o azáfama noticioso sobre material obtido ilicitamente e como tal divulgado.
Outrossim, se as investigações criminais não resultarem tão ou mais complexas do que a complexidade mesma do fato empírico das “orcrims” com seus engenhos, técnicas e sistemas, o Estado acabará sucumbindo à macrodelinquência e a sociedade, de todo modo, submeter-se-á ao império do mal.
O próximo passo social seria a barbárie, pois o atavismo já o estaríamos vivenciando, acaso fosse permitida a inconsequência de se misturar ordens virtualmente inconciliáveis nesse cenário de obtusidades e de perversões criminais: macrocriminalidade (funcionalismo penal) X criminalidade clássica (dogmatismo garantista).
A propósito, enquanto juízes e representantes do Ministério Público emitem ofícios, cartas e demais expedientes próprios da burocracia judiciária, ainda que no formato digital, macrocriminosos utilizam inúmeros aplicativos próprios da tecnologia da informação e muitos outros engenhos, produzindo suas soluções de modo muitíssimo mais célere do que o poder público é normalmente capaz de prover às diversas demandas por distribuição de Justiça e outras necessidades públicas.
É vergonhoso e esse é precisamente o ponto fraco do Estado de Direito a ser reorientado até mesmo em razão da necessidade de sua sobrevivência institucional, sem embargo da atuação de pessoal satisfatoriamente qualificado para os desafios destes novos tempos e das novas rotinas processuais.
Assim sendo, ou o Estado se atualiza, além de selecionar bem os seus agentes que lhe darão adequada corporeidade, ou cede à barbárie.
Finalmente, argumenta-se, apenas por amor ao debate, que as narrativas que foram divulgaram até aqui parecem também clara e inteiramente desproporcionais, valendo para suscitá-las conforme aqui descritas o axioma processual consolidado pela principiologia jurídica: pas de nullitè sans grief (“não há nulidade sem prejuízo”).
Para concluir, constata-se que há duas linguagens jurídicas para a repressão legal da criminalidade, haja vista suas duas acepções contemporâneas: a criminalidade propriamente dita ou clássica e a macrocriminalidade.
Misturar ou inverter essas linguagens para cenários litigiosos distintos é a técnica de defesa dos que não têm razão perante o Estado de Direito.
Corruptela dessa inversão terminológica e conceitual é o processo de desqualificação pessoal e subjetiva dos agentes desse mesmo Estado de Direito, máxime quando cumpram com êxito as suas atribuições legais na repressão a esse tipo altamente complexo e sofisticado de delinquência e quando atuam proativa e cooperativamente suas funções de competência legal específica.
Conforme ficou assentado acima, ou o Estado se atualiza –e a lei o determina expressamente!– ou sucumbe ao crime com o qual segue todo o espectro das conquistas sociais entre nós.