Limites para o STF decidir sobre os diálogos da Lava Jato

Foto: STF/Divulgação
Frederico Vasconcelos

Sob o título “Não há dilação probatória no habeas corpus”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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Ao menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) defendem que as consequências práticas das mensagens supostamente trocadas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol devem ser definidas por tribunais inferiores antes de chegar à Corte.

Um desses ministros é o relator da Lava-Jato, Edson Fachin.

Na sessão desta terça–feira (25), da Segunda Turma, no julgamento de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Fachin deixou claro que o caso só pode ser debatido no STF depois de ser submetido a outros juízes, em ações específicas.

Primeiro, não se tem notícia de que o material tenha sido submetido a escrutínio pelas autoridades judiciárias antecedentes, descabendo à Suprema Corte conhecer originariamente da matéria, sob pena de indevida supressão de instância, na medida em que o Supremo Tribunal Federal não funciona como órgão de revisão direta de atos jurisdicionais imputados a juízes de primeiro grau —argumentou Fachin, em referência aos diálogos divulgados pelo site The Intercept Brasil.

O ministro também disse que, antes de mais nada, as mensagens devem ser submetidas a uma perícia, em uma ação específica, apresentada à primeira instância. Somente depois disso a Justiça poderia decidir se as provas são fortes o suficiente para anular os atos de Moro enquanto conduzia a Lava Jato.

Ainda que se admitisse a possibilidade, em tese, de uso em favor do acusado de prova ilicitamente obtida, essa providência inserir-se-ia no campo da validade. Nada obstante, a confiabilidade desses elementos, a meu ver, dependeria de prévio exame e reconhecimento, em sede jurisdicional própria, de sua autenticidade e integridade.

Mas, será dito que se trata de prova ilícita.

Vedam-se provas obtidas por meios ilícitos (principio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), algo inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a condenação obtida pelo Estado a qualquer preço.

A proibição da prova ilícita surgiu na Suprema Corte americana. Ao interpretar essa proibição, a Corte delimitou o sentido e o alcance da norma, para estabelecer exceções às regras de exclusão, como a da admissibilidade da prova ilicitamente obtida por particular, a da boa-fé do agente publico e a da causalidade atenuada.

Na Alemanha, essa proibição foi objeto de preocupação do Tribunal Federal Constitucional. Ali fixou-se a chamada teoria das três esferas, que gradua a privacidade e qualifica juridicamente as investidas estatais contra elas para fins de produção da prova. Por ela, apenas a prova produzida com invasão das estruturas mais íntimas da vida privada, como o monólogo, seriam inaproveitáveis; as provas produzidas com invasão das camadas menos profundas da intimidade podem ser aproveitadas, se a intensidade da invasão for proporcional à gravidade do crime investigado.

No Brasil, a Constituição de 1988 prevê, entre as garantias fundamentais, que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Mas a inadmissibilidade da prova ilícita não exige que ela seja interpretada como garantia absoluta, nem afasta que seja submetida a testes de proporcionalidade. Aliás, a prova ilícita que favoreça o réu é admissível.

A reforma processual de 2008, nessa linha de entendimento, permite o aproveitamento da prova ilicitamente obtida quando corroborada por fonte independente ou quando sua descoberta inevitavelmente ocorreria.

Há uma corrente de criminalistas que entende que as provas ilegais podem ser usadas para defender o réu. Se elas demonstram a parcialidade do julgador, podem ajudar a soltar o condenado, que é o que querem para o ex-presidente Lula.

A doutrina, na linha de Andrey Borges de Mendonça (Nova Reforma do Código de Processo Penal. Primeira Edição. Ed. Método, 2008. P. 172) abarca a possibilidade de utilização da prova ilícita em favor do acusado e, majoritariamente, aponta para a possibilidade de sua utilização, mesmo se obtida por meio de violação legal ou constitucional, na hipótese de ser ela o único meio de prova da ilegalidade cometida contra o acusado.

Antônio Scarance Fernandes (Processo Penal Constitucional. Sexta Edição. Editora RT. P. 83-84) defende a possibilidade da prova ilícita pro reo com fundamento no princípio da proporcionalidade. No mesmo sentido, se posicionam Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior, invocando a teoria do sacrifício, segundo qual, no conflito entre a garantia processual e o direito à liberdade, esse deveria prevalecer.

Ademais, observe-se que, dentro de um encontro fortuito de provas, a maneira como o atual ministro da Justiça e o procurador reagiram à divulgação das conversas, sem contestar o teor das afirmações e defendendo o comportamento adotado na época, aponta que o conteúdo é fidedigno e que ele pode servir de base para reverter decisões da Lava Jato, por exemplo, contra o ex-presidente Lula.

Ora, seria necessário periciar a documentação apresentada no sentido de saber sobre sua autenticidade.

Ora, sendo o habeas corpus uma ação autônoma será necessário a existência dos elementos da demanda, quais sejam as partes, pedido e causa de pedir. O pedido é de liberdade (habeas corpus liberatório) ou de salvo-conduto para a ameaça de violência ou coação à liberdade de locomoção (habeas corpus preventivo). A causa de pedir é o fato originário da ilegalidade.

O direito líquido e certo que o habeas corpus visa a tutelar é a liberdade de locomoção. Em verdade, se é direito, é porque é líquido e certo, pois o que se quer dizer é que o fato alegado é irrefutável, indiscutível.

Ora, sendo o habeas corpus um remédio jurídico que tem como escopo proteger um direito líquido e certo específico, que é a liberdade de locomoção, a prova demonstrativa deste direito é pré-constituída, já que tem de ser previamente produzida.

Disse bem Paulo Rangel (Direito processual penal, 20ª edição, pág. 1042) que a natureza jurídica do habeas corpus não permite, assim, maior dilação probatória, já que ao paciente compete o ônus de provar a ilegalidade que alega em sua petição inicial. A ilegalidade já tem que estar patente, existir antes da impetração, pois a sua liberdade de locomoção está sendo violada. Daí porque se diz que no habeas corpus não cabe análise de provas, discussão probatória.

No habeas corpus se visa a análise de ilegalidade que seja patente.

Assim a ilegalidade já tem que estar patente, existir antes da impetração, pois a sua liberdade de locomoção (direito líquido e certo) está sendo violada.

No habeas corpus o que se visa é a análise da ilegalidade ou não de ato constritivo da liberdade de locomoção.

O fato de ser, o que dizem, um fato notório, não determina que esteja extrema de dúvidas, se para ele depende a prova de sua autenticidade.

Não cabe no habeas corpus contraditório com relação a prova pericial. Ela deve estar extrema de dúvidas.

Somente se justifica a concessão do habeas corpus por falta de justa causa para a ação penal quando ela é evidente, ou seja, quando a ilegalidade é evidenciada pela simples exposição dos fatos com o reconhecimento de que há imputação de fato atípico ou ausência de qualquer elemento indiciário que fundamente a acusação.

Aliás é possível verificar se perfunctoriamente os elementos em que se sustenta a denúncia ou a queixa, para reconhecimento da “fumaça do bom direito”, mínimo demonstrador da existência do crime e da autoria.(JTACrSP 87/150 e RT 652/282), mas não se pode pela via estreita do mandamus trancar ação penal pela falta de justa causa quando o seu reconhecimento exigir um exame aprofundado e valorativo da prova dos autos (RTJ 113/1017; JSTJ 3/326/7 e 260 – 1, dentre outros).

Fala-se até que a sentença transitada em julgado pode ser rescindida por habeas corpus, como nas hipóteses de nulidade radical, ou na ausência de criminalidade do fato.

A prova de que haveria uma suspeição do juiz de primeira instância no julgamento do ex-presidente Lula, no caso de um tríplex, deve estar distante de qualquer dúvida.

O argumento da defesa de Lula para o habeas corpus de soltura era muito frágil: o fato de Sergio Moro ter aceitado ser ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro. Mas havia no ar o fantasma dos diálogos entre Moro e o chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol. Que não poderiam ser usados, por não estarem nos autos e, sobretudo, por serem provas ilegais que, no mínimo, precisam ter sua autenticidade verificada antes mesmo que se discuta se provas ilegais podem ser usadas a favor do réu.

Por isso, o ministro Gilmar Mendes tentou um atalho, propondo que se desse liberdade ao ex-presidente até que o julgamento do mérito fosse concluído na Segunda Turma.
Seria uma medida cautelar inominada, determinada no bojo de um remédio constitucional, objetivando a concessão, ainda que liminar, de um habeas corpus de ofício.

Deve ser lembrado ainda que a condenação do ex-presidente, no caso lembrado, foi objeto de ratificação pela segunda instância, em sede de efeito devolutivo, onde inclusive a pena foi objeto de aumento somente objeto de diminuição pelo Superior Tribunal de Justiça ao se julgar recurso especial, por sua composição fracionária competente.

Diante disso fica frágil, em sede de habeas corpus, o reconhecimento de eventual suspeição, fato que leva a nulidade da sentença, diante da fragilidade probatória existente.