AJD critica endurecimento do sistema penal no Pacote Anticrime

A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulga Nota Técnica sobre o chamado “Pacote Anticrime”.

O documento de 75 páginas e extensa bibliografia reúne a avaliação da entidade sobre as propostas apresentadas à Câmara de Deputados pela comissão de juristas presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, e pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.

Numa forte crítica ao conjunto de medidas, a AJD entende que “mais uma vez a sociedade se depara com propostas de endurecimento penal como promessa de solução da criminalidade, em que pese despojada de base científica e ao preço de se desconstruir institutos consolidados em nosso sistema de justiça criminal”.

Na introdução do documento a AJD afirma:

“A quase totalidade do Pacote Anticrime nada traz de realmente novo, revelando-se em mais um instrumento de endurecimento do sistema penal como panaceia para a solução dos sérios problemas que afligem a sociedade brasileira em torno do tema segurança pública, muito embora, nas últimas décadas, possa ser verificado que a edição de leis penais mais gravosas não tenha surtido o efeito desejado na medida em que o encarceramento vem aumentando exponencialmente sem que os problemas de segurança sejam resolvidos.

Antes, vêm eles se agravando.

Nesse palco, a edição de leis penais mais severas com o fim de atender a um clamor populista está em descompasso com os estudos mais abalizados e atuais sobre a temática, ignorando a ampliação gradativa da insegurança pública e do hiperencarceramento, fatores intimamente correlacionados”.

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A seguir, trechos sobre questões relevantes:

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Legítima defesa e “escusável medo”

Os excessos culposo e doloso na legítima defesa, tão bem delineados no Código Penal vigente, são inteiramente descaracterizados no projeto, que acrescentou um parágrafo ao seu art. 23 facultando ao juiz reduzir a pena até a metade, ou até mesmo deixar de aplicá-la, se o excesso (doloso ou culposo) “decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, o que alarga sobremaneira os limites da justificante, conferindo-se ampla margem de discricionariedade para o reconhecimento da legítima defesa.

A toda evidência essa norma busca primordialmente proteger os agentes estatais de segurança pública, concedendo-lhes verdadeira licença para matar impunemente.

 

Regime inicial fechado da pena

Restabelece-se (…) a prisão preventiva obrigatória, extirpada há tantos anos da legislação processual, renegando-se o desenvolvimento democrático do Processo Penal em afronta à Constituição Federal de 88, que estabeleceu o direito à liberdade provisória como uma das garantias fundamentais do cidadão.

 

Encarceramento e endurecimento das penas

O projeto apresentado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, alguns meses antes do pacote anticrime do atual ministro da Justiça, se situa na

mesma linha ideológica de combate à criminalidade e, na toada punitivista, preconiza não só o endurecimento de penas, mas também um tratamento mais rigoroso na execução penal, propondo diversas medidas no intuito de se manter o réu condenado encarcerado pelo maior tempo que for possível.

(…)

Observa-se que o texto proposto além de inconstitucional, por ferir o princípio constitucional da individualização da pena, burla entendimentos hoje sedimentados no Supremo Tribunal Federal.

 

Efetividade do Tribunal do Júri

Além de desacompanhada de qualquer justificativa ou embasamento empírico, e inspirada pela obsessiva e descabida ideia de que a condenação e a prisão dos

acusados conferem maior efetividade ao Tribunal do Júri, a proposta viola os princípios constitucionais e de direitos humanos da presunção de inocência e do direito a recurso.

 

Cumprimento da pena e progressão de regime

A proposta contida neste parágrafo mostra-se violadora do princípio constitucional da individualização da pena e, de conseguinte, apresenta-se em desconformidade com o ordenamento constitucional pátrio, uma vez que engessa a atividade jurisdicional, fazendo com que cesse o exame de circunstâncias dentro do processo de execução de cada apenado, impondo ao julgador um mecanismo matemático simples, sem possibilidade de exame de outros elementos que possam trazer concretude à verdadeira individualização da pena.

 

Organizações criminosas

A proposta de reforma legislativa volta-se para o endurecimento das penas nos casos de pessoas aprisionadas que sejam líderes ou que integrem organizações criminosas.

Nesta tendência punitivista, a proposta foi além da proibição de progressão de regime ou concessão de livramento condicional somente aos condenados por integrar organização criminosa, mas intencionou abarcar aqueles que foram condenados por crimes praticados através de organização criminosa. Nesta situação, no entanto, a condenação deve se dar pelo crime de organização criminosa, pois resta, na figura descrita, subsumida um dos verbos nucleares do crime que acima já foram examinados. Não é possível praticar-se crimes por meio de organização criminosa sem haver a tipificação desta figura delituosa.

 

Escuta ambiental

No tocante à escuta ambiental constante da Lei 12.850/2013, vê-se, de pronto, que a abordagem pretendida pelo projeto anticrime do atual ministro da Justiça revela atecnia legislativa e desconhecimento da matéria.

 

Lavagem de dinheiro e tráfico de drogas

A proposta cria a figura do “agente policial disfarçado”. (…) Citado projeto franqueia que o policial, disfarçado, crie o próprio crime, ao induzir/instigar o suspeito a prática da conduta antijurídica com a compra e/ou recebimento de: drogas ilícitas; arma de fogo, acessório ou munição; e bens ou valores provenientes de lavagem de dinheiro.

 

Informante do bem

As políticas criminais que estimulam tais práticas correm o risco de representar mais um passo em direção à privatização das atividades investigativas, ao controle social do cidadão pelo cidadão, à cultura do “vigilantismo”, ao isolamento e à atomização das relações interpessoais.

Propostas inconstitucionais, lacunosas, formuladas com má técnica legislativa, sem a consideração dos impactos orçamentários, das repercussões negativas nas relações de trabalho, na criação de uma cultura de “vigilantismo” e, sobretudo, por consistirem em mais um passo no sentido de reforçar um modelo de processo penal autoritário, favorecendo práticas inquisitórias que nos distanciam ainda mais dos 19 países da América Latina que já adotaram o sistema acusatório adversarial.