Equívocos do CNJ ao limitar a atuação de juízes nas redes sociais

Sob o título “Uma armadura para a liberdade de expressão dos magistrados”, o artigo a seguir é de autoria de Jorge Luiz Souto Maior, juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí – SP. (*)

 

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Debate-se no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a aprovação de uma Resolução, para delimitar o campo de atuação dos magistrados em redes sociais.

A mera existência do texto, independente do seu conteúdo, já reflete dois grandes problemas: o da consideração de que os magistrados seriam cidadãos distintos de outros cidadãos; e o da compreensão de que com uma resolução se possa definir o campo da liberdade de expressão, que tem sede constitucional e se insere na órbita dos direitos fundamentais.

Tratar magistrados como cidadãos distintos é um equívoco tanto na perspectiva da construção da cultura de privilégios, quanto na seara da restrição da sua individualidade.

Claro que se pode dizer que um magistrado deve ter uma conduta social compatível com sua função, mas esse pressuposto serve para o médico, o advogado, o professor, o engenheiro, o pedreiro, o vendedor, o bancário, o empresário, o governador, o prefeito etc.

Não se pode exigir do magistrado uma conduta moral e ética que seja distinta daquela que se exige de todas as pessoas, nas suas diversas profissões, também porque os limites da liberdade de expressão, que já estão estabelecidos na ordem jurídica e que valem para todos, se aplicam também ao magistrado.

Qualquer regulação específica a respeito, por melhores que sejam as intenções, ou chove no molhado, reproduzindo os termos que já se podem extrair da ordem jurídica, ou cria maiores barreiras, fazendo com que não possa ser vista senão como uma forma de repressão, que é, seguramente, incompatível com o princípio fundamental da República, o da independência do juiz.

No Estado Democrático de Direito a figura do juiz é extremamente relevante, por ser o responsável em fazer valer a lei, e nada pode justificar que se interfira em sua liberdade de pensamento, de expressão, de comunicação e de participação ativa na vida em sociedade.

Aliás, é de todo relevante, até para garantir a imparcialidade e a previsibilidade de condutas no âmbito do Judiciário, que a sociedade conheça os juízes; que saiba o que pensam e quais valores os magistrados expressam.

A defesa da moralidade administrativa, referida no parecer que tenta justificar a aprovação da Resolução, não é base para uma censura prévia à liberdade de expressão. A imoralidade não está na expressão do pensamento. A imoralidade está na surpresa e nos ajustes inconfessáveis e sigilosos, fora dos autos, que interferem no resultado do processo.

Os termos da Resolução, como não poderia deixar de ser, conforme já adiantado, interferem, indevidamente, na cidadania, na liberdade e na independência do magistrado.

Senão vejamos.

Destaque-se, inicialmente, a previsão contida no parágrafo único do art. 2º da Resolução, que prevê que a regulação alcança inclusive manifestações em grupos privados.

“Consideram-se rede social todos os sítios da internet, plataformas digitais e aplicativos de computador ou dispositivo eletrônico móvel voltados à interação social, em grupos públicos e/ou privados, que possibilitem a comunicação, a criação ou o compartilhamento de mensagens, de arquivos ou de informações de qualquer natureza.”

O Capítulo II da Resolução estabelece as “diretrizes de atuação dos magistrados nas redes sociais” e, na sua seção I, traz “recomendações de conduta”. As expressões utilizadas, por si sós, são repressoras e invasivas.

E quais são as recomendações, concretamente?

Pois é. As recomendações, como dito, ou dizem o óbvio ou são repressoras, sendo que a maior explicitação da repressão está na fórmula aberta com que algumas “recomendações” são expressas.

Na letra “a” do inciso I do art. 3º se diz que os magistrados devem “adotar postura seletiva e criteriosa para o ingresso em redes sociais, bem como para a identificação em cada uma delas”. Mas, afinal, o que vem a ser, concretamente, essa recomendação? Impossível saber…

Na letra “b” preconiza-se ao magistrado “observar que a moderação, a sobriedade, a reserva, a discrição, o decoro e a conduta respeitosa e ilibada devem orientar todas as formas de atuação nas redes sociais”. Os termos não se explicam em si. Talvez, então, possam ser utilizados para dizer que a presente manifestação de questionamento à edição da Resolução não é sóbria…

A letra “c” serve apenas para deixar a advertência de que “a utilização de pseudônimos não isenta a observância dos limites éticos de conduta e não exclui a incidência das normas vigentes”.

E na letra “d” se diz uma obviedade, qual seja, a de que o magistrado deve “abster-se de utilizar a marca ou a logomarca da instituição como forma de identificação pessoal nas redes sociais”, porque, afinal, na vida privada o magistrado não se expressa em nome da instituição e sim como cidadão.

De todo modo, isso não seria nada muito diferente dos cartões de visita, com a marca do Judiciário, que muitos magistrados (de todos os ramos e graus de jurisdição) utilizam para deixar com alguém ou alguma instituição o seu contato.

As recomendações continuam no inciso II, visando atingir, mais diretamente, o teor das manifestações os magistrados nas redes sociais, fixando os deveres de:

– “a) evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar o conceito da sociedade em relação à independência, à imparcialidade, à integridade e à idoneidade do magistrado ou que possam afetar a confiança do público no Poder Judiciário;”

Vê-se, aqui, claramente, a censura prévia quanto à possibilidade de o magistrado expressar opiniões ou mesmo compartilhar críticas ao próprio Judiciário, sob o pressuposto de que essa postura abalaria a confiança do público no Poder Judiciário, quando o efeito pode ser exatamente o contrário. A autocrítica é essência da transparência e da experiência democrática.

– “b) evitar manifestações que busquem autopromoção ou que evidenciem superexposição, populismo judiciário ou anseio de corresponder à opinião pública;”

O que é autopromoção, superexposição e populismo judiciário? Não há como definir isso e muito menos dizer, por critério objetivo, quando uma conduta se dá no anseio de corresponder à opinião pública. E, de todo modo, não me parece que se teria nesses casos alguma transgressão ética.

– “c) evitar manifestações cujo conteúdo, por impróprio ou inadequado, possa repercutir negativamente, mesmo em grupos restritos, ou atente contra a moralidade administrativa;”

A atuação que atente contra a moralidade administrativa não pode ser medida meramente por palavras e sim por condutas. A figura regulada é um autêntico nonsense.

– “d) manter conduta cuidadosa, serena e discreta ao interagir nas redes sociais, evitando a violação de deveres funcionais e a exposição negativa do Poder Judiciário, observada sempre a prudência da linguagem;”

A regulação é indefinida e, portanto, inaplicável por critérios objetivos. Assim, só se vislumbra sua aplicação quando for de interesse pessoal do controlador, o que fere, gravemente, os princípios da impessoalidade e da moralidade.

– “e) evitar embates ou discussões, inclusive com a imprensa, não devendo responder pessoalmente a eventuais ataques recebidos;”

– “f) procurar apoio institucional caso seja vítima de ofensas ou abusos (cyberbullying, trolls e haters), em razão do exercício do cargo;”

A deliberação pessoal do magistrado, na sua defesa pessoal e dos valores que expressa, em face de quem quer que seja e na forma como bem entender, constituem atributos da personalidade e os direitos de personalidade não podem ser suprimidos do magistrado. Aliás, sequer podem ser renunciados por qualquer cidadão.

– “g) evitar expressar opiniões ou aconselhamento em temas jurídicos concretos ou abstratos que, mesmo eventualmente, possam ser de sua atribuição ou competência jurisdicional, ressalvadas manifestações em obras técnicas ou no exercício do magistério;”

A sociedade tem o direito de conhecer o pensamento do magistrado sobre os relevantes temas jurídicos que envolvem a sua jurisdição. O fato de não expressar suas convicções não significa que não as tenha e estas, ademais, se revelam a cada decisão proferida.

O artificialismo da regulação serve apenas como mecanismo de mordaça, com tendência a forjar uma áurea de pensamento único e acrítico no campo do Judiciário. Cumpre deixar claro que manifestações públicas sobre temas jurídicos é hipótese muito distinta da expressão de aconselhamentos a quem for parte de processos específicos sob a jurisdição do juiz.

– “h) abster-se de adiantar o teor de decisões judiciais, ou de atender a pedidos de partes, advogados ou interessados em processos judiciais formulados por meio de redes sociais não institucionais, orientando o requerente a encaminhar o pedido por vias adequadas;”

– “i) evitar interações pessoais que possam suscitar dúvidas em relação a sua integridade, idoneidade ou imparcialidade de julgamento, especialmente com outros profissionais da justiça, tais como escritórios de advocacia, membros do Ministério Público ou partes em processos judiciais;”

Aqui, novamente, a obviedade impera, pois sobre processo específico, submetido à sua apreciação, o juiz só deve mesmo se manifestar nos autos, atendendo a regularidade procedimental do contraditório e da ampla defesa.

– j) “abster-se de compartilhar conteúdo ou a ele manifestar apoio sem convicção pessoal sobre a veracidade da informação, evitando a propagação de notícias falsas (fake news);”

– “l) avaliar, antes de compartilhar conteúdo ou a ele manifestar apoio, se não há, ainda que de forma subliminar ou implícita, discurso discriminatório, de ódio, ofensivo, difamatório, obsceno, imoral, ilegal ou que viole direitos humanos ou direitos de terceiros.”

A regulação somente repete uma recomendação que a todos que lidam com a internet atinge, só que o faz de forma mais gravosa, porque a ninguém é atribuído um efeito punitivo quando demonstrada a ausência de dolo e se tenta imputar ao magistrado uma pena pelo cometimento de um erro humano.

No plano das “vedações”, fixa a Resolução, no artigo 4º, quais seriam as “condutas” que os magistrados não poderiam cometer nas redes sociais.

“I – manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério (art. 36, inciso III, da LOMAN; artigos 4o e 12, inciso II, do Código de Ética da Magistratura Nacional);

II – emitir opinião que demonstre engajamento em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos (art. 95, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal; art. 7o do Código de Ética da Magistratura Nacional;

III – emitir ou compartilhar opinião que caracterize discurso discriminatório ou de ódio, especialmente os que revelem racismo, LGBT-fobia, misoginia, antissemitismo, intolerância religiosa ou ideológica, entre outras manifestações de preconceitos concernentes a orientação sexual, condição física, de idade, de gênero, de origem, social ou cultural (art. 3o, inciso IV, da Constituição Federal; art. 20 da Lei no 7.716/1989);

IV – patrocinar postagens com a finalidade de autopromoção ou com intuito comercial (art. 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal; art. 36, inciso I, primeira parte, da LOMAN; art. 13 do Código de Ética da Magistratura Nacional);

V – receber patrocínio para manifestar opinião, divulgar ou promover serviços ou produtos comerciais (art. 95, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal; art. 17 do Código de Ética da Magistratura Nacional);

VI – associar a sua imagem pessoal ou profissional à de marca de empresas ou de produtos comerciais (art. 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal; art. 36, inciso I, primeira parte, da LOMAN; art. 13 do Código de Ética da Magistratura Nacional).”

A regulação não representa novidade, a não ser quanto à crítica política que, de fato, nunca foi vedada ao cidadão magistrado, porque, afinal, a sua participação na vida política do país não é vedada constitucionalmente, tanto que lhe é assegurado o direito de votar. Todos os segmentos sociais podem expressar suas preferências políticas, sem que isso represente engajamento partidário.

Veja que os próprios §§ 1º e 2º do artigo em questão tenta restringir a restrição, estabelecendo que:

“§1º Para os fins do inciso II deste artigo, a vedação de atividade político-partidária não abrange manifestações, públicas ou privadas, sobre projetos e programas de governo, processos legislativos ou outras questões de interesse público, de interesse do Poder Judiciário ou da carreira da magistratura, desde que respeitada a dignidade do Poder Judiciário.

§ 2º A divulgação de obras técnicas de autoria do magistrado não se insere nas vedações previstas nos incisos IV, V e VI, desde que não caracterizada a exploração direta de atividade econômica lucrativa.”

O texto, bem se vê, ou reproduz fórmulas legalmente já estabelecidas ou as amplia de forma inespecífica, abrindo espaço para uma atuação repressiva e punitiva da liberdade de expressão dos magistrados, recusando, com isso, a sua condição de cidadão, ferindo os seus direitos de personalidades e, pior, deixando no ar a dúvida sobre quais seriam, de fato, os propósitos em se tentar impor armaduras, na lógica de uma censura prévia, à liberdade de expressão e de comunicação dos magistrados, o que, sem dúvida alguma, só favorece à desconfiança e ao descrédito do Judiciário, sobretudo, no aspecto de seu efetivo compromisso com a efetivação dos direitos fundamentais e a defesa da democracia.

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(*) O autor é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002); coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital – GPTC e membro da Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e da Seguridade Social – RENAPEDTS.