Palestras fazem a festa do Judiciário e do Ministério Público

Ao defender a palestra remunerada que proferiu para a empresa Neoway, citada em delação na Lava Jato, o procurador da República Deltan Dallagnol afirmou ao repórter Flávio Ferreira, da Folha:

“O fato de você estar em um caso grande não deve ser um impeditivo para que você tenha uma atividade docente, para que você leve boas mensagens para a sociedade”. [veja aqui]

Dallagnol recorre ao velho argumento de juízes e promotores para tentar justificar colóquios em resorts à beira-mar e caravanas d’além mar.

Essas facilidades são apresentadas à opinião pública como “congressos científicos”. Em geral, são realizados nos finais de semana prolongados, com despesas pagas por anfitriões que contam com patrocínios públicos e/ou privados.

Dallagnol disse ao jornalista que nunca adotou qualquer procedimento para abrir empresa, o que foi sugerido em mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas em conjunto com a Folha.

Tivesse adotado, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato não teria sido pioneiro nesse tipo de iniciativa privada.

Em 2007, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) censurou o procurador regional da República Guilherme Schelb, do Distrito Federal, acusado de tentar captar recursos de empresas ou entidades para um projeto empresarial que criou.

Haveria, no caso das palestras, uma certa elasticidade de conceitos.

A Lei Orgânica do Ministério Público, no artigo 44, veda aos membros do Ministério Público “exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério” [grifo nosso].

Eis como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) interpreta essa exceção, em nota oficial divulgada a título de defender Dallagnol:

“A própria Constituição da República autorizou, expressamente, aos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário o exercício, cumulativo com o cargo, de atividade de magistério, desde que haja compatibilidade de horário. Dentro do conceito de magistério se insere, claramente, a realização de palestras“. [grifo nosso]

Eis como o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) trata a atividade docente na Resolução 73/2011, no artigo 4:

“O exercício de docência deverá ser comunicado pelo membro ao Corregedor-Geral da respectiva unidade do Ministério Público, ocasião em que informará o nome da entidade de ensino, sua localização e os horários das aulas que ministrará”.

Por sua vez, o Código de Ética da Magistratura, em seu artigo 17, estabelece:

“É dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional.”

Alguns fatos confirmariam a distinção entre o exercício habitual da docência e as palestras e encontros sob o manto de “atividades científicas”.

1) Alguns juízes federais que acompanharam, num final de semana, o ministro Dias Toffoli no “Primeiro Seminário Internacional da Ajufe”, na Argentina, foram notificados pela corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região para apresentarem certificado de participação e resumo de estudos ou relatórios de trabalhos acadêmicos, quando se sabe que não foi ministrado nenhum curso naquele evento. [veja aqui]

2) O Tribunal de Justiça de Pernambuco ainda não informou o custo total de uma viagem de 25 magistrados e servidores à Alemanha, em maio, para treinamento de oito dias na Faculdade de Direito de Frankfurt, com todas as despesas pagas pelo tribunal. [veja aqui]

A corregedoria-geral do mesmo tribunal publica em seu site a relação de magistrados pernambucanos que exercem atividade docente, registrando, respectivamente, a comarca, a instituição de ensino, as matérias, os dias da semana e os horários.

3) Um juiz estadual e um promotor de Justiça mantêm em seus currículos a atividade de “coordenador acadêmico” do Instituto Brasileiro de Administração Judicial (Ibajud), uma associação civil de direito privado que se apresenta como organização sem fins lucrativos.

O instituto é mantido por escritórios de advocacia, leiloeiros judiciais, pecuaristas, empresas do agronegócio, administradores judiciais e firmas de recuperação de créditos. O Ibajud promove eventos no país e no exterior.

4) A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) arcou com as despesas do bufê servido nos eventos de comemoração dos 30 anos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do seminário internacional “O Poder Judiciário nas Relações Internacionais”. [veja aqui]

A deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) defendeu, em entrevista a Joelmir Tavares, da Folha, que palestras de agentes públicos como o procurador Deltan Dallagnol sejam regulamentadas. [veja aqui]

Advogada e professora da Faculdade de Direito da USP, ela disse que é preciso estabelecer regras para evitar conflitos de interesse, além de limite de remuneração.

“Acho um absurdo um ministro do Supremo poder fazer palestra em um órgão público, como já houve notícias, ganhando R$ 30 mil”, disse. “É valor de aula, não de show, entendeu? É importante ter regramento”.

Eis o fato a que a deputada se refere:

Em 2015, a Folha publicou que “o governo de Minas Gerais (PT) convidou os ministros Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, e Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, para proferir palestra de uma hora sobre o novo Código de Processo Civil, oferecendo R$ 40 mil como remuneração a cada um”. [veja aqui]

O então secretário da Casa Civil de Minas Gerais, Marco Antônio Rezende, disse que foi feita “uma apuração do que se paga normalmente para palestrantes ou conferencistas nesse nível”.

“Achamos que o valor de R$ 40 mil está dentro do que o mercado paga”, afirmou.

O evento foi realizado numa sexta-feira. Consultados pela Folha na segunda-feira seguinte, os ministros Fux e Salomão disseram que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional permite a remuneração. Três dias depois, informaram ter decidido abrir mão dos honorários.

Quando o ministro Joaquim Barbosa presidiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), parte do colegiado pretendia proibir doações de dinheiro, passagens, hospedagens e brindes para congressos, outros eventos e turismo de magistrados. Não conseguiu.

Foi aprovada uma norma estabelecendo que os eventos de magistrados poderiam receber 30% do custo total.

Comentário do jornalista Janio de Freitas: “Empresas e endinheirados agora só podem influir 30% nas decisões dos magistrados influenciáveis. Ou também: 70% da ética dos magistrados estará protegida pela proibição, e 30% liberados para o que der e vier. Sobretudo o que der.”

A porta ficou aberta para a realização de palestras em locais propícios aos chamados embargos auriculares.

Conforme o próprio CNJ noticiou, “o magistrado só poderá participar de eventos jurídicos ou culturais, patrocinados por empresa privada, na condição de palestrante, conferencista, debatedor, moderador ou presidente de mesa. Nessa condição, o magistrado poderá ter as despesas de hospedagem e passagem pagas pela organização do evento”.

Na época, Joaquim Barbosa comentou sobre a utilidade de encontros de juízes em resorts: “Magistrado não é vocacionado a ficar participando de congressos e simpósios”.

“Resorts não combinam em nada com o trabalho intelectual sério”. “Não vejo porque essa gana, essa sanha de participar de aprimoramento em resort. Não há aprimoramento algum”.

O episódio envolvendo Deltan Dallagnol também deixa no ar uma questão incômoda: por que alguns podem promover cursos, eventos e palestras, e outros, não?

Em 2008, Joaquim Falcão, professor da FGV Direito Rio, então membro do CNJ, na época presidido por Gilmar Mendes, foi relator no caso de um juiz de Goiânia, sócio de um curso jurídico. [veja aqui]

Em seu voto, Falcão sustentou que magistrados não podem ser sócios de cursos jurídicos e nem de qualquer outra atividade na qual possam usar seu prestígio para obter lucro. Determinou ao juiz o desligamento da sociedade.

Dez anos depois, entrevistado no programa de Pedro Bial na TV Globo, Falcão usou o mesmo argumento em relação a Gilmar Mendes. “Na medida em que você usa a autoridade como ministro do Supremo para ganhar dinheiro, temos uma questão ética”, disse.

Na ocasião, Gilmar Mendes não quis comentar a fala de Falcão.

Nesta sexta-feira (26), Falcão publicou artigo na Folha sob o título “O que tanto conversam?” [veja aqui]

“Dos três Poderes, o Judiciário e seus tribunais é o que mais oferece festas. Festas para todos gostos, ano inteiro”, diz Falcão.

“Medalhas, títulos, honra ao mérito, jantares de adesão, comemorações de promoções, aposentadorias, remoções. Almoços que iniciam seminários, coquetéis que encerram.

Prêmios. Recepção a ministro do Supremo. A outro, também. Discursos, conferências, palestras. Idas a resorts, comitivas ao exterior. Festas presenciais, é claro. Não são virtuais.”

Segundo Falcão, essas festas “não são gratuitas”. “Têm uma função na definição da justiça”.

O artigo trata de temas que frequentam este Blog desde o primeiro post.