Memórias de um repórter em Israel

Em 1976, repórter da Gazeta Mercantil, viajei ao Quênia para cobrir a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).

O evento congestionou a cadeia hoteleira daquele país africano. Uma noite, quando retornei ao Hotel Serena, em Nairóbi, soube que minhas malas haviam sido transferidas para outro andar.

Toda a ala do hotel fora ocupada pelo ditador Ferdinando Marcos, presidente das Filipinas, que viajou com a mulher, Imelda Marcos, famosa pela coleção de sapatos, e assessores militares.

Guardadas as devidas proporções, lembrei-me desse episódio quando soube que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, viajara a Israel, em junho, acompanhado de cinco assessores.

O presidente do STF levou o chefe de gabinete; o chefe da assessoria internacional; o diretor-geral do STF; um assessor especial da presidência e um juiz auxiliar que o acompanha desde sua gestão como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Ou seja, Toffoli transferiu parte de seu gabinete para Tel Aviv e Jerusalém. Em tempos de recursos escassos, a comitiva viajou em avião da Força Aérea Brasileira, com direito a pernoite em Lisboa, na volta.

Aparentemente, o cerimonial do tribunal tratou um evento comum da diplomacia israelense como a visita de um chefe de Estado.

Senão, vejamos.

A Confederação Israelita do Brasil (Conib), a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e o Project Interchange haviam convidado membros das Cortes Superiores para um seminário em Israel, de 17 a 21 de junho. O convite definia o evento como “nosso próximo seminário para ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça”.

Além de Toffoli, viajaram dois ministros do STF, Rosa Weber e Roberto Barroso, e cinco ministros do STJ.

Os convites previam que os custos do seminário, incluindo passagem aérea ida e volta, alimentação e hospedagem seriam de responsabilidade das entidades promotoras.

Weber e Barroso informaram que pagariam as despesas de viagem. O STJ não prestou informações.

Como a Folha revelou, Toffoli e os cinco auxiliares receberam R$ 108 mil em diárias do STF.

Toffoli viajou em agenda oficial, que integrou a programação do seminário, segundo a Conib.

Junto ao convite enviado aos ministros, foi anexado o itinerário de um seminário anterior, realizado em 2018 para líderes políticos brasileiros.

O roteiro é semelhante ao cumprido por este repórter, em 1996, a convite do Consulado de Israel em São Paulo, viagem realizada em companhia de cinco jornalistas latino-americanos.

Visitamos à Suprema Corte de Israel, o Parlamento israelense (Knesset). Fomos recebidos por ministros e funcionários das pastas da Defesa, das Relações Exteriores, da Justiça e pelo presidente do Banco de Israel.

Visitamos o Centro Yitzhak Rabin, museus e locais históricos preservados; estivemos num ponto de vigia nos Montes Golan.

Conhecemos o projeto de dessalinização da água; centros de pesquisas agrícolas, empresas nascentes e empresas de tecnologia avançada nas áreas de informática e segurança.

Conversamos com empresários, jornalistas, líderes palestinos e árabes, com cientistas e professores de universidades israelenses.

Hospedamo-nos em hotéis e kibutzim.

Havia a programação informal e a agenda convencional. Comemos falafel em mercados públicos. Num jantar em restaurante, o primeiro-ministro Shimon Peres conversava com um grupo de pessoas, na mesa ao lado.

No final da viagem, soube que o nosso cicerone, um senhor simpático que falava português fluentemente, era um oficial reformado, herói de guerra. Ele não furou filas, não se recusou a passar por portas com detectores de metal.

Ele disse que havia lido meu livro “Fraude“, publicado em 1994, que revela os bastidores das importações superfaturadas de equipamentos de Israel para as polícias e universidades paulistas.

A operação foi contratada –sem licitação– no final do governo do peemedebista Orestes Quércia (1987-1991).

Quércia era amigo do então cônsul de Israel em São Paulo, seu padrinho de casamento, diplomata estimado na comunidade pela aproximação de empresários brasileiros e israelenses.

O superfaturamento foi revelado pela Folha, confirmado posteriormente em perícias da Polícia Federal e de uma comissão de peritos nomeada pela Justiça.

A operação –realizada em triangulação com uma empresa de paraíso fiscal– foi possível graças a um parecer de Michel Temer, assinado em 1991. Procurador-geral do Estado de São Paulo no governo de Luiz Antônio Fleury Filho, que sucedeu a Quércia, Temer sustentou que “não há o que criticar em matéria de legalidade e da regularidade da contratação”.

O STJ absolveu Quércia, denunciado pelo Ministério Público Federal sob a acusação de estelionato.

Em Israel, cumprindo a programação prevista, visitamos uma das empresas que forneceram equipamentos ao governo paulista. O presidente disse que a companhia praticara preços internacionais, e atribuiu as suspeitas de sobrepreço à atuação, no Brasil, de um empresário atravessador, cujo nome preferiu não mencionar.

Durante toda a viagem, não havia assessores para blindar ou intermediar entrevistas. Perguntou-se o que se quis perguntar.