‘Volta-se a golpear a já combalida legislação trabalhista’
Sob o título “Medida Provisória 881/2019: de avanços que recuam“, o artigo a seguir é de autoria do juiz do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano e do procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes. (*)
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É de Daniel Boorstin a afirmação de que, para a humanidade, destruir é fácil, enquanto criar é dificílimo. Poderíamos identificar a verdade dessa máxima em diversos contextos recentes da história política brasileira. Uma delas, porém, chamou recentemente a atenção por dizer com aquilo que mais flagrantemente tem faltado aos brasileiros: trabalho decente, na acepção da Organização Internacional do Trabalho (e não meramente “postos de trabalho”).
Na quarta-feira 21/8, o Senado da República aprovou o PLV 21/2019, decorrente da MP 881/2019 – dita da “Liberdade Econômica” (o que nos recorda a jocosa apreciação de Gilberto Bercovici, sobre a “libertinagem econômica”) –, repetindo em boa medida a criticável estratégia de 2017, quando o PL n. 6.787/2016, com três míseros artigos, transformou-se na Lei da Reforma Trabalhista, alterando mais de cem pontos da CLT.
Neste caso, de originais dezenove artigos, promoveram-se as mais inusitadas alterações em inúmeros campos da legislação, ao longo de pouco mais que uma centena de preceitos. Em particular, volta-se a golpear a já combalida legislação trabalhista. E tudo isto com mínimo diálogo.
A redação final apresentou alguma melhora em relação ao relatório original para a MP 881, é verdade.
Assim, por exemplo, já não se afasta a responsabilidade trabalhista solidária das empresas de um mesmo grupo econômico, mantendo-se intacto o art. 2º, §2º, da CLT (o que representaria um retrocesso de 76 anos), nem se exclui do regime de proteção trabalhista os empregados com remuneração superior a 30 salários mínimos (o que seria francamente inconstitucional), e tampouco se afasta a obrigatoriedade das Comissões Internas de Prevenção de Acidente para micro e pequenas empresas (mesmo porque convivemos com a média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos, sendo um deles fatal a cada 3h40).
Também já não se dispõe que, em qualquer hipótese, “não serão atingidos os bens de meros investidores que nela apenas detenham participação societária”. Ora, entre os chamados “sócios investidores” estão os adquirentes de debêntures expedidas por sociedades limitadas; e, como detectou a CPI do Banco Marka, a emissão de debêntures tem servido corriqueiramente como mecanismo de lavagem de dinheiro.
As “melhorias”, porém, não absolvem.
O texto aprovado ainda contém notórios vícios, pois
(a) libera o trabalho aos sábados, domingos e feriados, sem distinção de atividades ou de necessidades (piorando o quadro atual, dado pela Lei 10.101, que prevê descansos aos domingos a cada três semanas – única ocasião em que pai e mãe empregados em firmas distintas podem privar de um dia todo de convívio com os filhos em idade escolar);
(b) cria o “registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho”, inclusive mediante acordo individual, de modo a se anotarem apenas os horários que excederem àqueles contratados (ensejo excelente para a sonegação de horas extras, afora as dificuldades de prova que já se dão nos processos judiciais);
(c) dispensa estabelecimentos com até vinte empregados do registro formal de ponto (hoje, essa dispensa só se dá para os que mantêm até dez empregados), estendendo a mais de sessenta por cento das empresas do país uma condição que dificulta imensamente o respeito e a fiscalização dos limites de jornada dos trabalhadores;
(d) introduz a “carteira de trabalho digital”, sem exceções claras, o que pode aliar perigosamente a exclusão digital – alcançando dezenas de milhões de brasileiros – à informalidade;
(e) dificulta a fiscalização do trabalho, na medida em que impõe o critério de dupla visita para todas as empresas com menos de vinte empregados ou em primeira inspeção de locais “recentemente inaugurados”;
(f) dificulta a satisfação dos créditos trabalhistas quando a pessoa jurídica empregadora revelar-se inadimplente, por tornar mais restrita a hipótese civil de afetação do patrimônio dos sócios; e
(g) acaba com a inspeção prévia obrigatória de estabelecimento pela autoridade competente em saúde e segurança do trabalho.
Trocando em miúdos: a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, ao positivar o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado – no que acerta –, esquece a máxima oitocentista de Lacordaire: quando se trata da vulnerabilidade de um particular em relação a outro, é o Estado quem, por meio da lei, deve libertar.
Já não o fará como antes.
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(*) Guilherme G. Feliciano é Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
Paulo Douglas Almeida de Moraes é procurador do Trabalho da 24ª Região. Ex-Presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho.