‘Só a cidadania barra o descontrole do Supremo’, afirma Eliana Calmon
A ministra aposentada Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, entende que o Supremo Tribunal Federal insiste em interpretar o direito penal dentro de uma visão arcaica e formalista.
“Prevalece a defesa dos direitos individuais, sem limites no seu ativismo, que tem atropelado e desrespeitado o Legislativo”, diz ela.
Segundo a ex-corregedora nacional de Justiça, nenhum poder pode funcionar sem limites. “Nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, que atualmente é senhor absoluto, porque o Senado está comprometido diante dos inúmeros processos contra os parlamentares”, diz.
Na última quinta-feira (29), Eliana Calmon dividiu a mesa com o promotor de Justiça Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, em debate sobre o tema “O desempenho do Poder Judiciário no combate à corrupção”.
Promovido pela Associação Movimento Mulheres da Verdade – AMMV, o evento foi realizado no Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), em São Paulo.
O Blog pediu aos dois debatedores um resumo das principais questões abordadas.
A seguir, o roteiro de Eliana Calmon:
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– Iniciei abordando a questão da forma de interpretação do direito pelo Poder Judiciário a partir do positivismo, quando o juiz era absoluto servo da lei. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo ficou perplexo com as atrocidades do Terceiro Reich, deu-se início à revisão crítica do direito. O mundo civilizado adotou as Cortes Constitucionais e o direito passou a ser aplicado de acordo com os princípios inseridos na Constituição.
– O Brasil se atrasou em fazer a revisão, continuou positivista até a Constituição de 88.
– A previsão era termos um Supremo como Corte Constitucional, guardião da Constituição, decidindo as ações constitucionais –o chamado controle concentrado–, deixando os casos concretos para um outro tribunal a ser criado, o Superior Tribunal de Justiça.
– A pressão dos ministros do Supremo foi muito grande e acabou vingando a atual forma.
– Decidir em controle difuso e concentrado deu ao Supremo uma competência muito grande e anormal. O tempo está a provar ser impossível o modelo pelo número de demandas que chegam ao STF, e ele não dá conta, atrasando demasiadamente.
– Além disso, fez alongar o processo brasileiro que agora tem quatro instâncias, o que transforma o STJ em uma corte de passagem dos feitos que são revisados pelo Supremo em praticamente todo o direito público.
– O modelo posto na Constituição é o de permitir ao Poder Judiciário interpretar a lei no caso concreto pelos princípios constitucionais, surgindo o ativismo judicial. Em outras palavras, decidir o caso concreto na falta de uma normatização ou mesmo desprezar a norma para atender aos princípios, quando um deles foi omitido ou agredido.
– O Supremo vem ao longo desses 30 anos de Constituição avançando no seu ativismo. Chegou ao ponto de mudar até mesmo regra expressa contida na Constituição Federal, como, por exemplo, aceitou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quando a Carta de 88 fala expressamente em união entre pessoas de sexo diferente. Sem passar pelo Legislador, reconheceu o casamento entre pessoas de sexo diferente.
– O Supremo foi avançando de tal forma que desprezou o artigo 52 X que determinava a necessidade de acionar o Senado todas as vezes que julgasse inconstitucional um dispositivo legal no caso concreto. Passou a decidir em seu ativismo, ignorando inteiramente o Legislativo.
– No combate à corrupção, o Supremo sempre foi extremamente leniente com os crimes de colarinho branco, por uma tradição de defesa às classes dominantes política e econômica, por uma tradição em dar ênfase ao direito individual; por um rigor formal demasiado às regras processuais.
– Essa visão, passada para as demais instâncias, foi capaz de aceitar as mais benevolentes teorias como a do fruto da árvore envenenada, ou seja, uma só nulidade é capaz de inutilizar todo o processo.
– Foram arquivadas, por filigranas processuais, importantes operações, como a Boi Barrica, o caso Banestado, Castelo de Areia e Satiagraha.
– O Brasil mudou com a quebra de paradigma iniciada com o mensalão e a Lava Jato; com novos e valiosos instrumentos legislativos, tais como a Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, a Lei de Combate às Organizações Criminosas e a Lei Anticorrupção, com o Ministério Público independente e estruturado e a Policia Federal eficiente e transformada em uma polícia de inteligência. E a descoberta –depois da Lava Jato– da existência no Brasil de um crime institucionalizado, instalado dentro do governo, com grande dificuldade de combate.
Como estamos agora?
– Justiça de primeiro e segundo graus com um novo perfil no combate à corrupção, Ministério Público e Policia Federal fortalecidos e mais estruturados; uma legislação bem mais eficiente e moderna; uma sociedade participativa.
Pergunta-se: qual o problema?
– A grande preocupação: o STF insiste em interpretar o direito penal dentro de uma visão arcaica e formalista, prevalecendo a defesa dos direitos individuais, sem limites no seu ativismo, que tem atropelado e desrespeitado o Legislativo.
O que esperar?
Conclusões:
1) nenhum poder pode funcionar sem limites;
2) nem mesmo o STF, que atualmente é senhor absoluto, porque o Senado, instituição capaz de limitar a sua atuação, está altamente comprometido diante dos inúmeros processos contra os parlamentares que se eternizam e funcionam como uma espada de Dâmocles sobre suas cabeças;
3) quem pode impor limites? Só a cidadania será capaz de barrar o atual descontrole do Supremo.
Afinal, não serão um cabo e dois soldados suficientes para conter o absurdo descontrole, provocado pela falta de limites legais.