A lista tríplice do atraso
Sob o título “O Brasil e o atraso”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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O Brasil está sendo governando por um presidente de extrema-direita que não revela respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente e às minorias. Suas declarações, externadas em tom violento, são um exemplo disso.
Com isso ameaça tornar o Brasil, que tem uma das mais modernas Constituições do mundo, um pária internacional.
Jair Bolsonaro, o presidente da República eleito e legitimado por perto de cinquenta e sete milhões de votos, não está sozinho.
O ministro da Economia decide copiar o presidente e insulta a primeira-dama da França para uma plateia que bate palmas e dá risadas, desvirtuando-se uma discussão sobre ameaça ao bioma amazônico.
O ministro do Meio Ambiente concede entrevista para um youtuber canadense conhecido por suas posições supremacistas brancas.
O governador do Estado mais importante do país, São Paulo, João Doria, manda retirar de apostilas a explicação do que é identidade de gênero. Ora, a competência em matéria de legislar é concorrente envolvendo União, Estados e Municípios. Usou um tom forte para defender a medida.
Soma-se a isso a atitude retrograda do atual prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que mandou apreender publicações que a seu entender atingir a moral e os bons costumes e que estavam expostos em exposição.
Conseguiu uma medida judicial, em suspensão de liminar, quando o presidente do TJ-RJ afirmou estarem expostos os requisitos próprios para a defesa da ordem pública.
Na noite de quinta-feira (5), o prefeito anunciou, em seu Twitter, que censuraria a HQ “Vingadores – A Cruzada das Crianças”.
O título traz em suas últimas páginas uma imagem de dois homens se beijando, completamente vestidos.
Fiscais da prefeitura chegaram a ir à Bienal na tarde da sexta-feira (6) para verificar a denúncia e apurar se a notificação estava sendo cumprida. Os agentes foram embora sem encontrar qualquer material considerado impróprio.
Ainda na mesma tarde, o Tribunal de Justiça do Rio publicou uma decisão liminar que impedia a prefeitura de apreender livros e cassar o alvará do evento. O mesmo tribunal, no entanto, suspendeu a liminar na tarde do dia 7 de setembro.
Segundo a decisão do desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente do órgão, obras que ilustram o tema da homossexualidade atentam contra o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), e, portanto, devem ser comercializadas em embalagens lacradas, com advertência sobre o seu conteúdo.
A atitude tomada pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro revelou um caráter nazifascista.
Ora, não há censura prévia. A Constituição de 1988 é clara ao deixar concluir que “é proibido proibir”.
O ministro Celso de Mello reagiu a isso, aduzindo que a ação acima enfocada é produto de mentes retrogradas que dominam o poder do Estado.
Para o ministro, “mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da República”.
Concluiu o ministro Celso de Mello:
“Uma República fundada no princípio da liberdade e estruturada sob o signo da ideia democrática não pode admitir, sob pena de ser infiel à sua própria razão de ser, que os curadores do poder subvertam valores essenciais como aquele que consagra a liberdade de manifestação do pensamento !!!!”
O presidente da República, o governador de São Paulo, o prefeito do Rio de Janeiro, e não está longe o atual governador daquele Estado, parecem estar em “rota de colisão” com os ditames da Constituição de 1988: liberdade, respeito aos direitos humanos, democracia.
Parecem correr “para as trevas”.
Na liça formada a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ajuizou outro pedido de suspensão, desta feita da medida que determinou a apreensão das publicações mencionadas expostas na bienal.
Foi em boa hora em defesa da cidadania.
“Este pedido de suspensão visa a impedir a censura ao livre trânsito de ideias, à livre manifestação artística e à liberdade de expressão no país”, afirma a procuradora-geral da República.
Em verdade, a medida tomada pelo prefeito municipal do Rio de Janeiro, além do mais, afrontou à liberdade de expressão.
Sampaio Dória (Direito Constitucional, volume III) ensinava, a liberdade de pensamento é “o direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte ou o que for”.
“É forma de liberdade de conteúdo intelectual e supõe o contato do indivíduo com seus semelhantes.”
A liberdade de opinião resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Daí que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida de outras, sendo a liberdade do indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de uma posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se creia verdadeiro, como dizia José Afonso da Silva (Direito Constitucional positivo, 5ª edição, pág. 215).
De outro modo, a liberdade de manifestação de pensamento constitui um dos aspectos externos da liberdade de opinião.
A Constituição Federal, no artigo 5º, IV, diz que é livre a manifestação de pensamento, vedado o anonimato, e o art. 220 dispõe que a manifestação do pensamento, sob qualquer forma, processo ou veiculação, não sofrerá qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição, vedada qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística.
A liberdade de manifestação de pensamento que se dá entre interlocutores presentes ou ausentes, tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir, de forma clara, a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.
Ainda se fala em liberdade de expressão intelectual, artística e cientifica e direitos conexos, de forma que não cabe censura, mas classificação para efeitos indicativos (artigo 21, XVI).
Deve-se respeitar a liberdade de expressão, o direito de se expressar livremente, a faculdade de apresentar um pensamento, um dos pilares da democracia.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, cassou a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio que permitia a censura de obras com temática LGBT na Bienal do Livro no Rio.
Toffoli atendeu a um pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e proferiu a decisão no começo da tarde deste domingo, poucas horas depois de a procuradora-geral pedir no STF a derrubada da liminar do presidente do TJ, desembargador Claudio Mello Tavares. Tavares havia autorizado o prefeito Marcelo Crivella a recolher as obras na Bienal.
A sociedade democrática de nossos dias, onde a inclusão, a igualdade de direitos, a liberdade, são seus paradigmas, não pode ver no homossexual o estereótipo de doente ou desviado.
Correta, pois, a decisão, em grau cautelar, do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, restabelecendo o bom direito.
Mas é bom que a sociedade fique atenta a essas vozes do atraso, que, em nome de ideias ditas conservadoras, afronta os ditames da Constituição-cidadã de 1988.