Júri popular e ‘reality show da tragédia’

Começará nesta segunda-feira (23), em Brasília, o julgamento de Adriana Villela, ré acusada de triplo homicídio em 2009 contra os pais, o ministro aposentado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) José Guilherme Vilella e a advogada Maria Villela, e contra a empregada doméstica Francisca Nascimento Silva.

O júri popular deverá se estender por toda a semana.

O chamado “Crime da 113 Sul” deverá reproduzir, no Distrito Federal, o clamor público de outras investigações controvertidas –como o Caso Nardoni, o Crime da rua Cuba e o assassinato da atriz Daniela Perez, entre outros.

Poderá repetir o sensacionalismo midiático criminal, ou ‘reality show da tragédia’, como definiu o advogado criminalista Arnaldo Malheiros Filho, morto em 2016.

Na última sexta-feira, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) divulgou informações sobre o rito do julgamento popular, a escolha dos jurados e a orientação sobre como os jornalistas devem proceder –por exemplo, com o uso de celulares e a realização de fotos.

Será vedada a realização de closes da ré, para evitar a exposição de sua pessoa e, “em hipótese alguma”, serão permitidas fotos e filmagem dos jurados. O texto também trata dos cuidados normais em júris para preservar a incomunicabilidade dos jurados –depois de escolhido o Conselho de Sentença.

No mesmo dia em que o tribunal fez essas recomendações, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) divulgou nas redes sociais que “a Defesa Técnica de Adriana Villela questionou junto ao Supremo Tribunal Federal a validade de um laudo de datação papiloscópica por entender que tal estudo não era uma perícia válida”, e deveria ser excluída do processo.

Kakay informou que o ministro do STF Luís Roberto Barroso “manteve o documento no processo, mas determinando que o juiz presidente do Tribunal do Júri explique aos jurados leigos que o tal laudo papiloscópico não foi produzido por peritos oficiais, com o que concordou o ministro Gilmar [Mendes]”.

Essas informações sugerem um memorial para o magistrado que presidirá o júri, e um lembrete para os jurados.

“Confiamos no Tribunal do Júri que representa a sociedade de Brasília. A absolvição é a única forma de resgatar o sofrimento a que foi e é submetida Adriana Villela durante todos esses anos”, concluiu Kakay, como se estivesse fazendo uma sustentação oral no julgamento.

Não será o primeiro júri popular em que as partes se manifestam antecipadamente.

Em texto de 2008, sob o título “Um novo e democrático Tribunal do Júri“, o jurista René Ariel Dotti cita artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) que trata do julgamento de Suzane Louise von Richthofen [juntamente com os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva, ela praticou homicídio triplamente qualificado contra seus pais].

No caso, houve tentativas de induzir em erro a perícia, clamor público e a atuação de um assistente da acusação:

“O interesse público em acompanhar os debates e a decisão do tribunal popular foi intenso. A convicção generalizada acerca da culpabilidade dos réus levou uma infinidade de cidadãos a opinar sobre a quantidade das penas de prisão que deveriam ser aplicadas. A imprensa noticiou que o promotor de Justiça iria pleitear, para cada réu, o total de 50 (cinquenta) anos. Também o interesse privado na punição ficou caracterizado pela assistência do Ministério Público, representada pelo criminalista Alberto Zacharias Toron”.

Vários exemplos de excessos da mídia na cobertura de julgamentos famosos estão relatados na revista Getulio, publicação da FGV Direito de São Paulo, edição de setembro de 2010.

Sob o título “O Direito Penal e a Atuação da Mídia“, a revista discute a responsabilidade dos meios de comunicação na cobertura de casos polêmicos ligados ao direito criminal –e as saídas para evitar os abusos.

Participaram do debate a juíza Carolina Nabarro Munhoz Rossi, do TJ-SP; o promotor Alexandre Marcos Pereira, do 2º Tribunal do Júri de São Paulo; o delegado de Polícia Federal Edson Fábio Garutti Moreira e os advogados criminalistas Arnaldo Malheiros Filho e Luís Francisco Carvalho Filho, articulista da Folha. As discussões foram conduzidas pela advogada criminal Flávia Rahal Bresser Pereira.

Eis alguns exemplos:

– Arnaldo Malheiros citou o caso da rua Cuba [assassinato do advogado Jorge Toufic Bouchabki e sua mulher, Maria Cecília Delmanto Bouchabki, na sua casa, no número 109 da rua Cuba, endereço de classe alta em São Paulo]:

“Durante seis meses toda a imprensa noticiou que o filho do casal [Jorge Delmanto Bouchabki, de 18 anos] era culpado. Durante seis meses isso foi martelado nos principais veículos e em primeira página. A mídia comprou a versão da polícia, que dizia que o rapaz era culpado. No fim, não houve prova para condená-lo, aliás não houve prova nem para convocar um júri”.

– Malheiros mencionou o caso de um promotor de Justiça que se ofereceu à TV Globo para gravar, com uma câmara oculta em sua pasta, interrogatório sigiloso, no Hospital Albert Einstein, do jornalista Pimenta Neves, assassino da também jornalista Sandra Gomide.

– Carvalho Filho relatou a cobertura que fez para a Folha do julgamento de Guilherme de Pádua, condenado pelo assassinato de Daniela Perez, ambos atores da TV Globo:

“Chego ao Tribunal do Júri do Rio de Janeiro e vejo um boneco gigante, com uma foto ampliada do advogado de defesa, que era baixinho, um procurador do Estado nomeado para defender o Guilherme de Pádua, vestido de diabo: terno, chifre e rabo de diabo. Esse era o clima do julgamento, aquela mistura de TV Globo, os jornais, a tia e o tricô…

– Flávia Rahal citou um episódio midiático no julgamento do caso Nardoni [a menina Isabella Nardoni morreu ao cair do 6º andar do prédio onde morava com o pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá]:

“A reconstituição do crime foi realizada em um domingo à tarde, e isso aconteceu não porque os peritos preferissem trabalhar em um final de semana, mas sim porque a televisão queria maiores índices de audiência“.

Isso é uma deturpação“, disse Rahal.

Em 2010, o Tribunal de Justiça de São Paulo foi premiado –em um concurso sobre relacionamento com a mídia— ao apresentar o projeto “Caso Isabella: o julgamento do casal Nardoni“. O prêmio foi atribuído à organização da cobertura jornalística do júri popular.

Apesar da premiação, a revista Getulio assim descreveu o mesmo julgamento:

“Um júri marcado pela intromissão de repórteres em ritos judiciais, e pela antecipação ao público de informações por parte dos jurados e do promotor de Justiça Francisco Cembranelli”.

A história do assassinato de Isabella Nardoni está narrada no livro “O Pior dos Crimes“, investigação jornalística realizada durante cinco anos pelo repórter Rogério Pagnan, da Folha.