‘Congresso Nacional quer o juiz acovardado’, diz magistrado
Sob o título “Lei de abuso de autoridade: o fim do Brasil e a festa do crime“, o artigo a seguir é de autoria de Eduardo Perez Oliveira, juiz de direito de Goiás. O magistrado define a lei de abuso como “Estatuto da Impunidade”, e assina o texto com as seguintes ressalvas: “por enquanto, juiz de direito e primário, com bons antecedentes”.
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Para quem não percebeu, ontem, 24 de setembro de 2019, foi declarado o fim do Brasil, com o Congresso Nacional derrubando 18 dos vetos presidenciais à lei de abuso de autoridade.
Quem é honesto e pode, que se mude, porque o sistema conseguiu uma forma de blindar não só a si, mas a toda organização criminosa e até ao ladrão pé de chinelo.
Tomarei como exemplo um único dispositivo dessa lei de abuso de autoridade, melhor chamada como “Estatuto da Impunidade”, o artigo nono.
Será condenado à pena de um a quatro anos de prisão o juiz que:
- mandar prender alguém “em manifesta desconformidade às hipóteses legais”;
- não colocar em liberdade alguém quando a prisão for “manifestamente ilegal”;
- não substituir por medida cautelar ou liberdade provisória quando “manifestamente cabível”;
- não deferir ordem de habeas corpus quando “manifestamente cabível”.
Ora, a lei brasileira prevê pelo menos doze tipos de recursos criminais diferentes, com três instâncias recursais depois do juiz de primeiro grau: o tribunal, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Para alguns, o atual ministro da Justiça, Sergio Moro, é um manifesto herói, para outros, um manifesto criminoso e deveria estar preso. O mesmo acontece com Luiz Inácio Lula da Silva, que alguns defendem que manifestamente é um perseguido político.
Em inúmeros casos o STF diverge quanto à aplicação da lei entre seus ministros. Um entendimento que era comum no Judiciário, logo muda.
A lei penal não pode deixar espaço aberto para questionamentos quanto ao que é ou deixa de ser. Não há dúvidas, por exemplo, sobre o que é matar, roubar e estuprar.
Mas o que é mandar prender alguém quando “manifestamente” não deveria? O que é deixar de dar liberdade a alguém que “manifestamente” deveria estar solto?
Há casos de indivíduos presos em flagrante com quase meia tonelada de drogas ou portando metralhadora que são soltos na audiência de custódia.
Há casos de políticos que foram pegos em atos gravíssimos de corrupção e subversão do sistema que foram presos e soltos em seguida. Deveriam ser manifestamente liberados?
Se em vez de soltar, o juiz os prendesse e depois viesse ordem do STF, por exemplo, mandando soltá-los, certamente o magistrado responderia por abuso de autoridade segundo a nova lei.
E, vamos deixar bem claro, a “lei de abuso de autoridade” só pune quem prende, e não quem libera. Aliás, como sempre, também quem pede no Brasil não será responsável por nada. Será punido só quem aplica a lei, não quem eventualmente possa tentar burlá-la.
A liberdade de decisão do juiz é da própria natureza do Judiciário. Somente tiranos, como Napoleão, Stálin, Hitler, e, mais recentemente, Hugo Chavez, Maduro e Fidel, pretendiam ter juízes meros repetidores da lei, proibidos de interpretar. É a interpretação jurídica que renova diariamente a lei e a compatibiliza com a sociedade.
A perseguição aos juízes não surge agora, remontando há séculos. Caso emblemático no Brasil foi o do magistrado Alcides de Mendonça Lima, que, em 1896, ao declarar inconstitucional abusiva lei sobre o tribunal do júri, foi perseguido e condenado por prevaricação ao exceder as funções próprias do cargo.
Seu defensor foi o grande Rui Barbosa, que apontou que “as opiniões dos juízes, quando errôneas, no uso dessa atribuição, têm a sua emenda, não na responsabilidade penal dos magistrados, mas na reforma das sentenças” (BARBOSA. p. 233).
É evidente isso! Da decisão do juiz cabe recurso. É assim em qualquer lugar do globo, menos no Brasil.
Aliás, como a maldade se repete, há mais de um século também o texto refutado por Rui Barbosa trazia a criminosa expressão “manifestamente”, de forma que suas palavras são bem atuais:
“Aí está onde naufraga a ingenuidade dos que supõem ter, por esse manifestamente, delimitado com a precisão de uma raia inequívoca a linha entre o exercício correto e o exercício incorreto do poder confiado aos juízes, para joeirarem a constitucionalidade e a inconstitucionalidade na crítica das leis. O que é manifesto a um espírito, pode ser duvidoso ao critério de outros, ainda figurando que estes e aqueles ocupem nível superior, emparelhando, ao mesmo tempo, no talento e no desinteresse. Não se descobriu, até hoje, a pedra de toque, para discernir com certeza absoluta o oiro falso do verdadeiro na interpretação dos textos” (BARBOSA, p. 235).
A qualquer um de inteligência mediana é permitido ver que a expressão “manifestamente” é subjetiva e oportuniza várias interpretações e, claro, perseguições.
Tipos penais abertos dão espaço para toda espécie de arbitrariedade e insegurança social, pois até mesmo “os magistrados mais retos podem conscienciosamente divergir quanto ao alcance de uma frase, de uma fórmula, de um enunciado, ligando-lhe pensamentos diversos, ou limitando-lhe extensões desiguais” (BARBOSA, p. 235).
Para concluir seu raciocínio, o Águia de Haia firma-se em jurisprudência inglesa que diz:
“Não cabe ação contra o juiz por atos praticados ou opiniões exprimidas, na sua capacidade judiciária, em um tribunal de justiça. Esta doutrina tem-se aplicado a todos os tribunais. É essencial, em todos os tribunais, que os juízes, instituídos para administrar justiça, possam exercê-la sob a proteção da lei, independente e livremente, sem contemplação, nem temor. Não é em proteção e benefício dos juízes dolosos e corrompidos que se estabeleceu esta norma jurídica: é em proveito do público, interessado em que os juízes se sintam em liberdade de exercer as suas funções com desassombro e sem receio de consequências. Como poderia um juiz desempenhar-se assim do seu cargo, vendo-se cada dia e a cada hora sob a ameaça de processos, em resultado das suas sentenças?” Scoff v. Stanfield, L. R. 3 Exch. 223. ANSON: The law and custom of the Constitution (1892). v. II. p. 454. (BARBOSA. p. 280/281).
Voltando ainda na história, lembremos do Tribunal Popular , instituído por Vladimir Lenin em 1918, na União Soviética, que aboliu o sistema de justiça criminal anterior para aplicar a “justiça revolucionária”.
Os juízes soviéticos não podiam ser imparciais, nem eram independentes, uma vez que eram obrigados a seguir as orientações do Partido (ZIMMERMAN, 2010. p. 391).
O primeiro Código Penal soviético, de 1º de junho de 1922, trazia previsões abertas, como, em seu artigo 58, ao considerar contrarrevolucionária toda atividade que constituísse participação na burguesia internacional, com punição de três anos de reclusão até o banimento perpétuo. Em razão de seu tipo amplo e sem limites, incontáveis inocentes foram condenados por esse “crime”, dentre eles os que tiveram a ousadia de criar um comitê para lutar contra a fome severa de 1921/1922 (ZIMMERMAN, 2010. p. 394).
Outro regime totalitário foi o nazismo, durante o qual leis infraconstitucionais ignoravam a proibição constitucional da punição arbitrária, revogada em 1935, banindo a necessidade de lei prévia para caracterização de crime e admitindo que alguém fosse penalizado por atos ofensivos ao “sentimento do povo” mesmo que nenhuma lei tenha sido de fato violada (HOEFER, 1945, p. 386).
Somente poderia ser juiz quem fosse membro do partido nazista. O advento da Lei de Serviço Civil, de 1937, passou a exigir também um juramento de lealdade a Hitler e a possibilidade de remover os magistrados por motivos políticos.
“Participar de atividade burguesa internacional”, “ato ofensivo ao sentimento do povo” e “manifesta desconformidade às hipóteses legais”. Qual a diferença?
Assim, vê-se que tipos penais abstratos e a perseguição aos juízes é medida típica de regimes totalitários ou ditatoriais, interessados em controlar quem interpreta a lei.
Ora, porque não podemos depender da boa vontade de quem titulariza o cargo é que existem leis gerais e abstratas a serem interpretadas por magistrados titularizados conforme o ordenamento jurídico. É da essência do trabalho do juiz interpretar a lei, e ele não pode ser criminalizado por isso.
A base do Judiciário como poder encontra-se na liberdade de decisão do juiz, que só poderá ser punido em caso de evidente dolo, para o que, inclusive, já existem tipos penais, como os de corrupção e prevaricação e a própria lei já existente de abuso de autoridade, não sendo inéditos casos de ex-juízes que perderam a aposentadoria e foram criminalmente condenados.
Alguém acredita que um criminoso aceitará a pena? Ninguém assume sua culpa. Procurará de todas as formas atacar o juiz, e as inúmeras representações contra o então juiz Sergio Moro são um leve prenúncio do que será esse novo estado de coisas.
Se uma vara criminal mediana tem cerca de três mil processos, é até conservador imaginar que em pelo menos 10% disso, ou seja, em cerca de trezentos processos, o juiz será denunciado por abuso de autoridade. Basta que o criminoso consiga reverter a ordem de prisão.
O juiz será réu em trezentos processos. Pode até ser absolvido, mas quem arcará com todo o desgaste, o tempo, a pressão psicológica? Para alguém honesto, um único processo já é um castigo, e os vagabundos (sim, é essa a expressão) sabem disso. Quem consegue julgar em paz e ser imparcial assim?
Não, não é exagero. Decisões de prisão mudam diariamente. Há pessoas poderosas política e/ou financeiramente que em horas conseguem fazer seu reclamo subir e obter uma reversão da decisão original.
Fato é que a magistratura não pode sobreviver à falta de independência, pois isso culmina na ausência de imparcialidade, com prejuízo para toda a nação, que será conduzida ao caos.
Daqui para frente não haverá decisão judicial que não será declarada criminosa por aquele que é atingido, conduzindo os juízes a responderem em inúmeros processos criminais, com a vitória da violência e da corrupção.
A sociedade brasileira, por seu Congresso Nacional, decidiu o tipo de juiz que ela quer: o juiz acovardado, doente, sobrecarregado de trabalho e incapaz de aplicar a lei. Um espantalho de sua função, servindo para validar um sistema corroído, uma triste recordação daquilo que nunca permitiram que fôssemos.
Sim, aplicar a lei no Brasil virou crime. Mas apenas se for para exigir responsabilidade. Se for para deixar solta a criminalidade, tudo bem. A sociedade e a vítima que busquem seus direitos, mas em outro país.
A conclusão? É de que o crime venceu, e venceu dentro da “legalidade”. Agora a lei persegue e pune o juiz, o promotor de justiça e o policial. Em nenhum lugar do mundo é assim, mas no Brasil é.
Se esse quadro não se reverter, a verdade será uma só: os criminosos serão soltos. Todos eles. Os presídios se esvaziarão, nenhuma investigação criminal mais irá adiante, não haverá inquérito policial ou denúncia. Se houver, o juiz não poderá decretar prisão.
Não é exagero. Não é algo que “pode “acontecer, é algo que vai acontecer, porque a lei diz assim e ao juiz, se não quiser ser condenado e preso, cabe abaixar a cabeça e aplicá-la, pelo menos até que alguém defina as hipóteses de manifesto caso de liberdade e de prisão, um mistério a ser desvendado.
Eu sou um dos vários juízes que não dormiram essa noite, que já estão adoentados, cansados de lutar contra a maré levando pedrada. Eu também sou um dos brasileiros que tem consciência do que essa lei significa de verdade e tenho medo.
O sistema se blindou, os bandidos e as organizações criminosas respiram aliviados, pois no Brasil há lei, mas não há JUSTIÇA.
Anote a data, 24 de setembro de 2019. Pode ser que sobre alguém para marcar o dia da morte na tumba do nosso país.
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BIBLIOGRAFIA:
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. XXIII. Tomo III. 1896. Posse de Direitos Pessoais. O Júri e a Independência da Magistratura; Ministério da Educação e Cultura; Fundação Casa de Rui Barbosa; Rio de Janeiro, 1976, p. 227-306.
HOEFER, Frederick Hoefer, e Nazi Penal System–I, 35 J. Crim. L. & Criminology 385 (1944-1945)
ZIMMERMANN, Augusto. Marxist jurisprudence in the former soviet union: a critical appraisal. Revista Interdisciplinar de Direito, [S.l.], v. 7, n. 01, p. 383-397, dez. 2010. ISSN 2447-4290. Disponível em: <http://revistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/view/571>. Acesso em 26 de maio de 2019.