‘Educação militar não é indicada para a formação de crianças’, diz especialista
Sob o título “Escolas militarizadas: ‘não tem que aceitar, tem que impor’”, o artigo a seguir é de autoria de Roberta Bocchi, doutora em Educação pela PUC/SP. (*)
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“Não tem que aceitar, tem que impor.” Com essa afirmação, o governo federal sinalizou ao governo do Distrito Federal que as escolas militarizadas representam uma realidade e não uma opção, fato que contraria os princípios legais expressos na Constituição Federal e na LDB No 9.394/1996, que salientam a liberdade de expressão, os ideais de solidariedade humana e de gestão democrática.
A promessa do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim) é resolver os problemas de violência, além de ser capaz de produzir melhores resultados educacionais a partir de mais regras e disciplinas no ambiente escolar, principalmente nos locais considerados mais vulneráveis. Com esse compromisso, o programa parece desconsiderar o processo cognitivo humano, que depende dos estímulos adequados para o pleno desenvolvimento cerebral, principalmente na faixa etária dos alunos da Educação Básica.
As habilidades e as competências necessárias para o pleno desenvolvimento cognitivo são aprendidas e estimuladas durante toda a vida; contudo, é na fase escolar que seu estímulo adequado se torna primordial. Isso ocorre pelo período de pico maturacional do córtex pré-frontal, região do cérebro que nos diferencia dos outros seres vivos da terra, por permitir o processamento dos pensamentos, a avaliação das possíveis consequências de atos e de compreender as relações causais de longo prazo entre comportamentos e resultados.
Por conta dessa incrível capacidade cerebral para a vida humana em sociedade, alguns cuidados e estímulos adequados com as crianças e os adolescentes podem fazer toda a diferença na vida adulta dos pequenos. Diferença que deve estar distante de punições, regras rígidas ou disciplinas impostas pelo exercício do poder.
Funções cerebrais importantes como a flexibilidade cognitiva e a metacognição não terão tempo para se desenvolverem em um ambiente onde a criatividade do pensamento e o pensar sobre o pensar não encontram espaço.
A questão fica ainda mais intrigante quando aponta a necessidade de iniciar a implantação desse novo modelo escolar pelas regiões consideradas de maior vulnerabilidade.
Essa escolha parece ir além de uma simples questão geográfica, sinaliza talvez uma vontade política de controlar as massas populares por meio da educação de seus filhos, como se apenas os menos favorecidos merecessem uma educação punitiva e controladora, ou, ainda, da brecha à ideia da existência de determinadas infâncias e adolescências violentas e descontroladas em detrimento de outras mais dóceis e adaptadas.
A educação militar é ideal para formar militares, que precisam de disciplina e regras rígidas que garantam a sua sobrevivência no dia a dia de trabalho, pautado por um enfrentamento diário da violência humana e das questões mais cruéis da vida em sociedade. Ela não é indicada para a formação acadêmica de crianças em plena fase de desenvolvimento cognitivo, atentas e curiosas ao comportamento dos adultos e se espelhando neles para construir o seu padrão mental do humano.
Ao indicar as escolas militarizadas como solução educacional, condena-se à falência a escola pública que conhecemos hoje, desconsiderando todo o caminhar teórico, prático e democrático construído ao longo da história recente. Como dizia a minha avó: “Jogamos fora a água e a criança banhada por ela”.
O que sobrará?
Temo pelo fato de que, quando uma pessoa não tem a garantia de seus direitos básicos, como comida, abrigo, segurança e saúde, não encontra espaço para pensar em questões mais amplas como as abordadas nessas linhas, mesmo que sejam a raiz de seu sofrimento. Mesmo assim, devido ao martírio humano vivido, não enxerga mais nada além de sua sobrevivência imediata.
Infelizmente, é essa a realidade de uma parcela cada vez maior de nossa população; lamentavelmente, a promessa, mesmo que punitiva, de uma escola que possa aliviar essa situação, não encontra espaço para contestação em uma parcela da população privada da possibilidade de reflexão e de escolha.
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(*) A autora é pesquisadora da PUC/SP – área Políticas Públicas e Reformas Educacionais e Curriculares. Neuropedagoga e Supervisora de Ensino efetiva da Rede Estadual de Educação do Estado de São Paulo.