Uma sentença inesquecível
O texto a seguir foi compartilhado com magistrados pela juíza do Trabalho Luciana Oliveira, de São Paulo. Em tempos de intolerância nas redes sociais e de críticas ao Judiciário, sua mensagem merece leitura.
O episódio narrado é reproduzido como circulou originalmente. Sua transcrição foi autorizada pela juíza.
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“Hoje me lembrei de um ‘causo’ que aconteceu comigo logo no início da magistratura.
Eu era das poucas juízas substitutas que morava em Mogi das Cruzes e por isso, quando eu não estava substituindo em alguma vara da capital, o setor de Convocação costumava me mandar para as varas da região (Suzano, Poá, Ferraz…)
Certa vez, em Suzano, peguei um caso inusitado.
O reclamante, um senhor oriental, muito sério, descendente de japoneses, bem arraigado aos costumes, ajuizou ação contra a empresa postulando um relógio Rolex. Único pedido.
Explico: ele trabalhou na empresa por 42-43 anos e quando foi contratado havia uma previsão no regulamento da empresa (também japonesa) que o empregado, ao completar 40 anos de serviço na empresa, sem nenhuma punição ou falta injustificada ao trabalho faria jus ao relógio.
Acontece que a reclamada foi vendida para um outro grupo e acabou não cumprindo o combinado.
Então ele, indignado, entrou com a ação.
Inicial bem instruída, com uma via original do regulamento que ele recebeu ao ingressar na reclamada e guardou como um tesouro.
Na audiência, a reclamada apresentou uma defesa fraca, cujo argumento central era que ele não recebeu o relógio porque trabalhou mais de 40 anos (!) na empresa e não 40, como previsto no regulamento.
O advogado da reclamada ainda tentou um acordo, fez a proposta de pagamento de um valor que era mais ou menos metade do valor do relógio.
O reclamante, impassível, rejeitou.
A reclamada ainda melhorou a proposta. Ele rejeitou todas as propostas.
Não queria dinheiro. Queria o relógio prometido.
Não fizeram acordo e eu julguei, obviamente, em favor dele, determinando que a reclamada comprasse o relógio e ainda fizesse a gravação de uma placa metal para entrega, com o nome dele, declarando que ele trabalhou mais de 40 anos sem punição e que foi um empregado exemplar, conforme estava previsto no regulamento.
Como a gente, na época de substituto, fica pouco tempo nas varas, não acompanhei o desfecho do processo imediatamente.
Anos depois, encontrei casualmente no supermercado em Mogi uma senhora oriental, que me abordou com muita educação e timidez, perguntando se eu era juíza do trabalho. Quando eu afirmei que sim, questionou se meu nome era Luciana. Quando confirmei ela ficou muito feliz e me apontou seu marido, um senhor já bem idoso, que me cumprimentou sorrindo, timidamente, abaixando a cabeça, daquele jeito que só os japoneses fazem.
Ela me contou que ele era aquele reclamante e que quatro anos após a sentença a reclamada entregou o relógio e a plaquinha, exatamente como estava previsto no regulamento e como eu determinei na sentença.
E ainda me falou que isso era motivo de um orgulho imenso pro seu marido; que o relógio e a placa ficavam em um lugar especial na sala de visitas, pq simbolizavam toda a luta que ele travou para criar sua família, sempre trabalhando honestamente.
Fiquei feliz naquela época e tb hoje, ao lembrar da história.”