Bazuca de marshmallow contra a Justiça
Sob o título “Lei 13869/2019 – A bazuca de marshmallow contra a Justiça: mais uma tentativa“, o artigo a seguir é de autoria de Bruno Machado Miano e Gustavo Sauaia Romero Fernandes, juízes de direito no estado de São Paulo.
Com boa dose de ironia e humor, os autores comparam a nova lei com a anterior (Lei nº 4898/1965), e concluem, na contramão dos que veem uma ameaça aos magistrados: “Os legisladores criaram um monstro revanchista de poderes pífios”.
“Antes havia o rato que ruge. Agora temos o leão mudo e banguela. E o melhor: estão achando que criaram o Godzilla. Nem mesmo um Stay Puft”, afirmam.
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Como membros da magistratura há tempo razoável (dezesseis anos), ficamos inicialmente assustados com a repercussão do projeto da nova Lei de Abuso de Autoridade e a revogação dos vetos presidenciais pelo Congresso Nacional. Em especial, por conta dos rigorosos tipos penais e da possibilidade de Ação Penal Privada Subsidiária, para o caso de o Ministério Público não ingressar com Ação Penal Pública.
A toda e qualquer decisão, criminal, cível ou fazendária, estaríamos em tese sujeitos a responder pelo crime de abuso de autoridade. Ainda que desse em água o processo, teríamos de percorrer essa via crucis, contratar advogados, criando verdadeiro grilhão mental ante qualquer decisão.
Todavia, a análise do texto legal, isoladamente e em comparação com a Lei Especial Anterior (Lei nº 4898/1965), traz conclusão contrária ao pânico interno. E, a despeito da intenção escancarada de intimidar os sujeitos ativos das condutas previstas, os legisladores criaram um monstro revanchista de poderes pífios.
Hemos sempre de dar razão ao bardo inglês: se a vida, ao fim, é um amontoado de som e de fúria, não é menos verdade que no interregno entre a aurora e o alvorecer, fazemos muito barulho por nada.
É o que buscamos esclarecer, em linguagem que profissionais e leigos possam compreender.
1 – Sem dolo específico, sem crime – o primeiro ponto da boa técnica interpretativa é, pois sim, ler o que está na Lei. Assim como fatos não podem ser substituídos por narrativas, textos legais não se fazem trocar por anúncios apocalípticos. Com o perdão do óbvio, iniciemos pelo começo, com as disposições gerais:
“Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
- § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
- § 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.”
Este dispositivo rege todo o restante da Lei. Estabelece, para 100 % dos tipos penais subsequentes, o dolo específico – sem o qual nenhum de seus crimes existe.
O § 1º é taxativo. Ante a redação sofrível, vamos separar cada uma das finalidades específicas passíveis de tipicidade: I – prejudicar outrem; II – beneficiar a si mesmo; III – beneficiar a terceiro; IV – mero capricho ou satisfação pessoal.
Não é preciso ser um ás na interpretação de texto para concluir que todas as finalidades poderiam ser resumidas na última: satisfação pessoal. Seja por prejudicar desafeto, seja por ajudar a si ou pessoa querida, seja por capricho, frescura, vedetismo ou qualquer termo vago imaginado pelo novelístico redator.
Em resumo, só haverá delito se não houver dúvida razoável de que o único objetivo da autoridade em sua conduta for egoístico. Isto significa que, havendo eventual união entre dever legal e prazer pessoal, já se denotará imperioso excluir qualquer dos crimes descritos.
Para reforçar a indispensabilidade do dolo específico, o § 2º destaca o afastamento do malfadado crime de hermenêutica. A mera divergência interpretativa da Constituição ou da Lei, bem como na análise de fatos e provas, não bastará para a subsunção da conduta ao tipo legal.
Para efeitos legais, a autoridade é livre para observar, raciocinar e concluir. Mesmo que esta tríade do pensamento venha a colidir com inferências alheias, não poderá ser apenada com base nesta Lei. Observe-se que a norma não estabelece requisitos para definir interpretação, quanto mais restringir seu conceito.
Ou seja: considera-se interpretar a expressão de simples pensamento inteligível (nem precisa ser inteligente), sendo tal manifestação bastante para se tornar seu autor estranho à nova Lei.
Constatação intrigante é que a Lei nº 4898/1965 simplesmente não previa nenhuma das duas figuras. Não havia o dolo específico. Tampouco a exclusão do crime de hermenêutica.
A rigor, todos os seus tipos penais, abertos até o limite extremo (nas palavras de conhecido locutor esportivo), eram aplicáveis sem exigência de finalidade particular ou atipicidade por fundamentação.
Em princípio, qualquer ordem poderia ser considerada “atentado” a um dos direitos protegidos na norma, como a liberdade de locomoção. A separação de condutas típicas e atípicas ficava inteiramente sob as batutas de acusadores e julgadores, sujeitando o autor do fato ao risco de interpretações muito livres – cada vez mais comuns nos dias atuais, venham ou não de acadêmicos da UniGoogle.
Um perigo profissional que a Lei nº 13869/2019 impede, sem subterfúgios.
2 – Dos novos crimes: a bala de canhão de isopor. Imperioso constatar que todas as infrações que estão causando temor aos magistrados e membros do Ministério Público já estavam previstas na Lei 4898/1965.
Com um porém: os tipos da lei revogada eram, repita-se, abertos ao extremo, verdadeiros espacates penais.
Vejamos: o art. 3º da Lei 4898/65, em dez alíneas, previa várias formas (abertas) de cometimento de crime de abuso de autoridade, sem a exigência de dolo específico: atentado à liberdade de locomoção (uma prisão mal fundamentada, por ex.), ao sigilo da correspondência, ao direito de reunião, aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, dentre outros.
Esse último atentado simplesmente abarcava toda e qualquer violação dolosa às prerrogativas dos (as) advogados(as).
A OAB, que tanto comemorou a nova lei, deveria ter vergonha de sua miopia interpretativa, ou de seu parco conhecimento legislativo. O crime já estava lá, dormitando no art. 3º, j, da Lei 4898/65.
Agora, os artigos 20 e 32 da Lei 13869/2019 minudenciam quais prerrogativas, ao serem dolosamente violadas, constituem crimes: impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado; negar acesso a autos de investigação (civil, penal) ao advogado, salvo quando os autos estiverem com carga para diligência ou indicarem providências que serão realizadas futuramente, e necessitarem de sigilo.
Note-se: se antes tínhamos os sete círculos do inferno de Dante, hoje temos o jogo da amarelinha, de Cortázar: cada um escolhe seu caminho. E dá para saber que caminho escolher, lembrando da existência de ressalvas na nova Lei.
Também dizem os histéricos de plantão que a nova lei impede a decretação de prisões preventivas. Qual o quê!
Como escrito acima, a Lei 4898/65 já estabelecia como abuso o atentado ao direito de locomoção. Além disso, previa em seu art. 4º, alíneas a e e, as seguintes condutas: a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei.
É dizer: o que hoje estabelecem os artigos 9º e seguintes da nova lei são especificações desses tipos abertos. São condutas que nenhum agente da lei, em sã consciência, determinaria, autorizaria ou consentiria. E sem dolo específico não há crime.
Por fim, dizem que caiu o mundo para quem trabalha com execuções fiscais, porque a realização em massa das ordens de BacenJud nem sempre possibilita a liberação do excesso ex officio, dependendo do pedido da parte que teve seu patrimônio atingido.
O art. 4º, h, da lei revogada (a Lei 4898/65) já previa como abusivo todo ato “lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;”.
Já o art. 36 da Lei 13869/19 preceitua: “Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la;”.
Ora, a nova lei expressamente impõe que a parte demonstre o excesso da medida. Sem isso e sem o dolo específico, ou seja, a deliberada intenção de criar embaraços patrimoniais ao executado, não há crime.
Desses exemplos (há muitos outros) verificamos que os intérpretes do Direito, na quadra atual, estão se deixando levar por narrativas políticas, pela maléfica polarização político-partidária e ideológica de nossa sociedade, acreditando em uma versão (a lei é anti-lavajato; a lei é para os corruptos) e deixando a racionalidade, base do Direito, de lado.
Isso tem dado vazão a manifestações precipitadas de associações, magistrados(as), membros do Ministério Público, advogados (as), e ao lançamento de decisões com base em lei que ainda se encontra no período de vacatio, apenas para fazer barulho e situar o intérprete num dos lados dessa batalha campal que se tornou a vida pública brasileira.
Dirão muitos: mas até provar que o focinho de porco não é tomada, teremos sido processados por advogados mal intencionados, que não lançarão mão de recursos, mas de ação penal privada subsidiária da pública.
É o que passamos a analisar.
3 – Ação Penal Privada Subsidiária Fantasmagórica – ainda sob o impacto da revogação dos vetos, um dispositivo teve particular importância no sentimento de corrida para as montanhas. Ei-lo:
“Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.
- 1º Será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
- 2º A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.”
O substrato para desespero ou desânimo parecia bem razoável. Uma primeira leitura faz deduzir que, mesmo com a manifesta atipicidade de interpretações divergentes e decisões sem motivação estritamente pessoal, partes e advogados poderiam inundar as varas com ações subsidiárias, intimidando a autoridade pelo cansaço e pelo bolso, com a necessidade de constituir advogados.
Se a condenação final é descartada, o aborrecimento até a decisão poderia ser inequívoco. Porém, vale retornar ao mandamento básico de todo profissional jurídico: leia a lei. No caso, as leis. Da apreensão virá o alívio.
Longe de ser uma criação recente contra o abuso de autoridade, a Ação Penal Privada Subsidiária já era prevista na Lei nº 4898/1965, nos seguintes termos:
“Art. 16. Se o órgão do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo fixado nesta lei, será admitida ação privada. O órgão do Ministério Público poderá, porém, aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva e intervir em todos os termos do processo, interpor recursos e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.”
O leitor atento perceberá uma diferença significante. A Lei Atual menciona “prazo legal”. A anterior se referia a prazo fixado “nesta lei”.
E qual seria tal prazo? O do artigo 13: 48 horas contadas da representação da vítima.
Notem que sequer existia exigência de investigação prévia. Bastava que a representação versasse sobre fato definido como um dos crimes elencados.
Passados dois dias sem que o representante do Ministério Público apresentasse a denúncia, já se iniciaria o lapso para a própria parte dar impulso à relação processual.
Por sua vez, a Lei nº 13869/2019 fala em “prazo legal”, sem prevê-lo em qualquer de seus artigos. Assim, vale o prazo da Lei Geral – o Código de Processo Penal: quinze dias. Contados a partir de quando?
Depende da consistência da representação, pelo seguinte critério:
I – se a representação estiver munida de provas que o representante do MP considere suficientes para prescindir do inquérito policial, a partir do oferecimento daquela – artigo 23, § 5º;
II – por lógica, não havendo representação (agora dispensada como condição de propositura) ou, havendo, se o Ministério Público considerar necessária a abertura de investigação, a partir do encerramento desta.
É chegado, enfim, o prometido momento do suspiro aliviado.
O que acontece se o inquérito for arquivado (por falta do glorioso dolo específico ou fundamento diverso)? Não há prazo para o Ministério Público propor ação alguma.
E se não existe prazo para Ação Pública, muito menos para Ação Privada Subsidiária, ora pois.
Como diriam os fãs de certa obra cinematográfica, sentiram o Teorema? Talvez de forma consciente, talvez (ou provavelmente) por descuido no maquiavelismo, a ameaça de Ação Privada recriou a imortal cena de “Os Caçadores da Arca Perdida”.
Podem balançar a espada pra lá e pra cá, mas basta o tiro do arquivamento, com palavra final do Ministério Público, para o ameaçador cair duro no chão.
Consequentemente, quais as chances de o pacote da infâmia chegar ao destinatário? Ínfimas – para não dizer nulas. Mesmo com toda a sede de vingança especulada, com o trâmite beirando a velocidade da luz e com movimentação digna de quinta série para revogar os vetos, o produto final da iniciativa (a Ação Judicial propriamente dita) ficou sem pólvora.
Em relação ao texto legal anterior, o cão feroz se tornou inofensivo como as gatas exóticas dos articulistas. Sem mesmo um miado para tirar o sono.
4 – Conclusão – com todas estas explanações, surge uma pergunta inevitável: se a Lei anterior tinha aspectos muito mais duros, por que não era conhecida nem por seus aplicadores?
Estimamos ao menos duas explicações.
Primeiro, por conta de uma das lições básicas de Miguel Reale (naquele livro que quase todo aluno de direito leu no primeiro ano): a lei vigente também precisa de eficácia. Nas palavras do jurista das ruas, há Leis que “pegam” e outras que “não pegam”.
José Afonso Silva (naquele livro que todo aluno de direito deveria ler no segundo ano) chama isso de eficácia social. A antiga ficou lá, esquecida por décadas, em eminente desuso.
A segunda razão pode ser o caráter verdadeiramente abusivo contra os princípios do Direito Penal, definindo crimes de forma tão genérica que inviabilizaria qualquer atividade pública.
Não esgotaremos o rol porque, quando se fala de Brasil, há mais mistérios do que imagina nossa vã criatividade.
O inequívoco é que se viu a necessidade de uma lei nova, criada em ambiente democrático, aclamada pelos congressistas, com a sanção (ainda que parcial) do Executivo e a concordância da mais alta Corte Judicial. E assim foi. Só esqueceram a bala de verdade.
Concluímos, deste modo, que já decorreu tempo bastante para que os colegas magistrados retomem a serenidade e, com a capacidade interpretativa que os tornou membros desta heroica carreira, não levem adiante atos provocativos ou de sincera insegurança.
Não há por que acreditar que, doravante, a judicatura será tarefa exclusiva de covardes.
Se quiseram nos afetar, e acreditamos que foi este o desejo, entre o intento e o efeito prático há léguas de distância. Antes havia o rato que ruge. Agora temos o leão mudo e banguela. E o melhor: estão achando que criaram o Godzilla. Nem mesmo um Stay Puft.