Paraíso dos devedores e de acusados

O artigo a seguir é de autoria de Roberto Wanderley Nogueira, juiz federal em Pernambuco.

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O Brasil foi açambarcado por malfeitores. Daí para mais.. De fato, vivemos uma espécie de faroeste tropical contemporâneo.

Vejamos aqui alguns dos mais importantes efeitos, formalmente legais, associados à denominada Lei do Abuso de Autoridade, quanto à ameaça de enquadramento penal do juiz que sobreexcede a bloqueios de ativos do devedor de qualquer natureza (arts. 36, e demais, da Lei nº 13.869, de 05/09/2019).

No mesmo naipe, outros dispositivos oferecem o mesmo tratamento autofágico à autoridade em tema de persecução penal.

Estamos diante de uma aberração legislativa, e para o juiz prudente não há sequer um dilema nisso. Basta deixar de aplicar a penhora ‘online’ e outras medidas para os ativos bancários, além de outras garantias patrimoniais, que na sequência virá uma lei que a revogará ou o próprio Supremo Tribunal Federal, ainda que tardinheiramente, declarará a respectiva inconstitucionalidade.

É inteligente usar a própria lei absurda para a sua rápida revogação, dando-lhe, de certo modo paradoxalmente, eficácia máxima, e sem temperos. Afinal, é o pescoço do juiz que está em jogo e toda burrice tem os seus limites. Ora, quem relativiza o iníquo, pratica iniquidade também e se enreda na própria ignorância.

Eis a ideia: mostrar ao sistema o quão estúpido é o seu funcionamento e deplorável a sua inteligência, pois não se pode pedir aos juízes, já privados da imunidade judiciária, que violem a lei penal e cometam crime para satisfazer o interesse da parte.

Na realidade, o juiz que não pode decidir, simplesmente não é juiz coisa alguma (Nicklas Luhmann).

Esse é o papel que reservaram aos magistrados brasileiros os dignitários da República que ocupam as cadeiras do Congresso Nacional com o adminículo do poder Executivo, que deixou de vetar no todo esse abuso legislativo.

Façamos, então, que provem do próprio veneno e da própria audácia. Terão de correr atrás da própria bobagem. Que juiz nenhum se deixe tratar como palhaço ou estulto diante da estultícia do poder político e de suas maquinações de autodefesa, filhas da vilania.

Se não querem juízes, então que não tenham juízes todos os que compõem a sociedade que escolhe parlamentares como os que ela os tem no momento.

A razão de tudo isso não está nos governos, nas leis ou nos procedimentos que se sucedem, dia-após-dia, mas no povo, ignaro e torpe, no geral, que os escolhe, aceita e não sabe resistir aos erros formidáveis desses sistemas do mal, além do mais crescentemente perturbadores, e às vezes nem tanto.

A lógica da convivência antissocial subiu aos estratos do poder de Estado sob a atmosfera da concupiscência popular.

Sobre isto, quantos falam abertamente dos grandes corruptos, dos grandes malfeitos da corrupção, mas são corruptos também no varejo.

Com efeito, é melhor indeferir de plano os pedidos de constrição patrimonial do devedor, a qualquer título, e deixar que o tribunal assuma o risco da idiossincrasia estabelecida nessa lei deletéria e infamante.

Um juiz não pode ser instado a realizar o antidireito e aceitar ser enquadrado em lei penal – sem dolo nem culpa – como um cordeiro imolado.

A atividade judicial é de algum modo heróica, mas não a esse ponto tremendamente paroxístico de exigir do agente político da jurisdição a sua própria desconstrução, mediante atitude autofágica, suicida. Isso não seria jamais uma manifestação própria de cumprimento do dever, mas uma expressão de burrice lancinante elevada a altos decibéis da parte de quem assim procedesse por algum motivo menos esclarecido, talvez até mesmo torpe.

Na prática, o que vai acontecer é o seguinte: anomia ética!

No entanto, a tal Lei do Abuso de Autoridade é, sobretudo, inconstitucional, formal e materialmente falando, porque defenestra, na origem, o princípio da máxima eficácia na persecução criminal contida na Lei nº 12.850/2013, para a repressão aos crimes organizados, e também e principalmente porque importa na criação de tipos penais abertos, capazes de corporificar hipóteses de crimes de hermenêutica contra autoridades processantes.

Crime de hermenêutica, aliás, é um conceito puramente arqueológico do penalístico e não reúne a mínima atualidade jurídica, antes refletindo atavismo.

Só os heróis e os santos arriscarão a própria pele para exercer retamente a autoridade que lhe toca sob tais condições.

Lei que induz crime de hermenêutica a autoridade que encerra o poder-dever de produzir decisão, reúne um conteúdo materialmente impossível, sendo portanto juridicamente inválida, por inconstitucionalidade e obsolescência jurídico-histórica. Trata-se de um completo despropósito que deixa mal os seus editores.

Dir-se-ia mesmo que a Lei do Abuso de Autoridade traduz uma aberração legislativa, produto de ações desavisadas e inconsequentes da parte de seus promotores, obra que se afirma como demoníaca e sem a menor plausibilidade técnica e/ou ética de valer constitucionalmente, embora por enquanto esteja a produzir efeitos deletérios, tamanha a sanha destrutiva do edifício da República e da separação dos poderes que a tal lei contém e preconiza.

Sua disciplina favorece às ilegalidades em geral e sugere a impunidade de meliantes, submetidos ao mesmo benefício que compromete o devido processo legal pelo amesquinhamento do poder das autoridades processantes: ‘Contradictio in extremis’!

Mais do que tudo, a bolorenta Lei do Abuso de Autoridade, antes de coibir abusos, investe contra o livre funcionamento dos poderes da República e, por isso mesmo, traduz um expediente atávico, claramente conspiratório ao Estado de Direito. Com efeito, não se trata de um instituto contemporâneo, restando em desconformidade com a consciência jurídico-política hodierna.

Cumpre destacar, ainda, que, embora conceitualmente se possa exprimir alguma insurreição quanto ao estranhíssimo dispositivo legal, mais afeito a uma cilada que a uma norma jurídica propriamente dita, não se propugna aqui qualquer manifestação antijurídica, estranha ao Direito Positivo, mas antes a confirmação da vigência e da eficácia da lei que, embora criticada, vai ser rigorosamente cumprida pelo julgador.

Sua atecnia e obsolescência é que vão se encarregar de esgotá-la no tempo e no espaço, sem maiores delongas e/ou discussões. Realmente, o assunto não demanda alta indagação, porque salta aos olhos e é formidavelmente trivial.

Finalmente, o pedido de bloqueio de ativos do devedor no devido processo legal passou a configurar um pedido juridicamente impossível, porque não se pode requerer ao juiz que ele viole a lei penal, para o bem ou para o mal, ou sequer que permaneça nessa continuidade para os casos de decisões já adotadas anteriormente à vigência da lei em comentário.

E por mais absurdo que seja o tal tipo penal, é de fato o que prevalece no momento e deve ser observado em nome da unidade de sentido da ordem jurídica, ainda que “pereat mundo” e enquanto o assunto não for conhecido pelo controle concentrado de inconstitucionalidade específica.

No meio tempo, cumpre ao juiz que se encontrar em alguma dessas situações e para evitar ser no mínimo investigado pela prática arqueológica de crime de hermenêutica, ressuscitado no Brasil pela Lei nº 13.869/2019, proceder consoante uma destas duas fórmulas, além de uma recomendação expressa, a saber:

1) Primeiramente, adotar despacho para não conceder toda e qualquer medida constritiva de caráter patrimonial ou limitativo da liberdade que, em não sendo possível, desde logo, mensurá-lo matematicamente, possa vir a ser interpretado como sobreexcedente.

2) Um outro despacho para revogar toda medida que, nos mesmos termos, tenham sido expedidas pelo juízo anteriormente ao advento da mencionada Lei do Abuso de Autoridade, haja vista o caráter continuativo da constrição em comento findo.

3) Facultar expressamente à parte interessada o direito ao recurso às Instâncias Superiores.

Ora, nada melhor do que a antropologia nacional para explicar esses dislates macunaímicos que de quando em vez somos forçados a testemunhar, e sofrer, no contexto de tantos carnavais, de tanta desigualdade e de tanta mendacidade.

Estamos vivendo o absurdo!