Justiça lenta: massacre do Carandiru retorna ao CNJ sem previsão de desfecho

Está na pauta do Conselho Nacional de Justiça, nesta terça-feira (8), a reclamação disciplinar para apurar eventuais infrações cometidas pelo desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento que anulou a condenação de 74 policiais militares envolvidos no “Massacre do Carandiru”. (*)

A reclamação foi formulada por mais de 60 entidades e defensores dos Direitos Humanos.

Foi concedida vista regimental ao conselheiro Valtércio de Oliveira. O relator atual, ministro Humberto Martins, corregedor nacional de Justiça, não deverá participar da sessão, segundo informa sua assessoria.

Em maio de 2018, sob o título “A saga do Carandiru”, a Folha publicou editorial sobre o massacre e as reviravoltas processuais, como sinal de que “o Judiciário não consegue tomar decisões em tempo hábil e, quando se pronuncia, acaba por causar mais confusão”.

O editorial fez referência à decisão do TJ-SP de “manter a anulação dos cinco júris –que haviam condenado 74 policiais militares a penas que variavam entre 48 e 624 anos”.

“Há motivos para suspeitar de uma ação homicida deliberada, já que cada detento morto recebeu, em média, cinco tiros, enquanto nenhum policial foi alvejado; sobreviventes foram forçados a tirar as roupas e a empilhar os corpos; a cena do crime foi alterada”, registra o editorial.

“É possível que tudo termine em prescrição”, opinou o jornal.

O processo teve início em 1992 e tramitou na Justiça Militar. Concluída a fase de obtenção de provas, os autos foram remetidos à Justiça Comum.

Em setembro de 2016, Sartori concedeu habeas corpus de ofício, “para que as absolvições proclamadas pelo Conselho de Sentença, atinentes a três corréus no julgamento realizado em 15 de abril de 2013, fossem “estendidas a todos os demais réus, sem exceção, ficando eles absolvidos de todos os crimes que lhe são imputados”.

Segundo o desembargador, “não pode o Poder Judiciário dar duas soluções distintas para idêntica situação, sob pena de violação à teoria unitária ou monista do concurso de agentes, adotada pelo Código Penal, e até ao princípio constitucional pétreo da isonomia”.

A imprensa registrou, na ocasião, as reações ao julgamento.

A Folha publicou reportagem sob o título “‘Parceira’, PM é tratada como vítima do Carandiru por desembargadores“. A revista Época destacou: “‘Não houve massacre, houve legítima defesa’, afirmou Sartori“.

Em dezembro de 2016, o então corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, indeferiu o pedido de afastamento de Sartori (o ex-presidente do TJ-SP se aposentou em março deste ano).

Segundo o relatório de Noronha, os requerentes alegaram, em resumo, que:

a) ao invocar a tese de legítima defesa, Sartori “agiu com parcialidade em benefício da Polícia Militar”, violando o direito à fundamentação das decisões judiciais;

b) ao se manifestar nas redes sociais e nos meios de comunicação sobre o caso, violou o dever de decoro;

c) ocorreu excesso de prazo injustificado no processamento e julgamento das apelações;d) Sartori incorreu em violação do dever do Estado de apurar crimes contra os direitos humanos.

Noronha entendeu que o pedido de afastamento de Sartori não estava “devidamente fundamentado com todas as justificativas”. E que sua permanência no exercício da jurisdição não acarretava “nenhum risco ao processo ou ao direito das partes”.

Noronha concluiu: “Indefiro o pedido de liminar. No entanto, é recomendável a apuração dos fatos alegados, a fim de se aferir eventual violação dos deveres funcionais pelo requerido”.

Na ocasião, dezesseis pessoas e entidades defensoras de direitos humanos emitiram “Nota Pública” manifestando preocupação com a decisão do então corregedor nacional.

Sustentaram que Sartori “demonstrou falta de isenção no julgamento e proferiu calúnias contra quem criticasse os absurdos de sua decisão, resultando na apresentação da reclamação disciplinar perante o CNJ”.

“O caso Carandiru fortalece a avaliação internacional de que as instituições repressivas brasileiras são corporativas e incapazes de responsabilizar juridicamente seus membros”, afirmaram os signatários.

A nota pública recebeu o título “Carandiru não é coisa do passado” –reproduzia o título de pesquisa publicada em 2015, pela FGV Direito SP –ou seja, um ano antes do julgamento.

A pesquisa, coordenada por Maíra Rocha Machado e Marta Rodriguez de Assis Machado, fez um balanço sobre os processos, as instituições e as narrativas 23 anos após o “Massacre”.

No prefácio, Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito SP, diz que as duas pesquisadoras fizeram “uma verdadeira autópsia de como o direito foi negligenciado ao longo de mais de duas décadas”.

O julgamento no TJ-SP  –e a longa tramitação da reclamação no CNJ– confirmam duas observações de Vieira:

– O Massacre do Carandiru, assim como o de Carajás e o da Candelária, constitui demonstração cabal da continuidade de estruturas autoritárias, que permanecem a exercitar seu poder arbitrário sobre os setores mais vulneráveis da sociedade brasileira, mesmo sob uma nova ordem constitucional.

– O Massacre do Carandiru talvez constitua apenas um símbolo destacado da incompletude de nossa transição. Seja pela brutalidade que marcou aquele momento, seja pela negligência das diversas instâncias de aplicação da lei em reconhecerem o abuso e responsabilizarem os que o praticaram.

(*) RECLAMAÇÃO DISCIPLINAR – 0005774-79.2016.2.00.0000