Limites e excessos na polêmica sobre a nova lei de abuso de autoridade

Sob o título “Nova lei de abuso de autoridade: de polêmicas, limites e excessos“, o artigo a seguir é de autoria do juiz do trabalho Guilherme Guimarães Feliciano e do advogado Alamiro Velludo Salvador Netto. (*)

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No ambiente acadêmico, formou-se há algum tempo consenso quanto à necessidade de elaboração de uma nova lei de abuso de autoridades no Brasil. Assim se entendia, entre outras razões, porque a agora revogada Lei 4.898/1965, para além de refletir os ideários do período da ditadura civil-militar, não mais satisfazia os anseios de uma sociedade interessada em que os agentes públicos, a despeito das especificidades de seus cargos, atuem nos limites de sua função e em absoluto respeito à legalidade.

Os brasileiros já não aceitam, como outrora, a pérfida cultura do “sabe com quem está falando”.

Pois bem. Em setembro último, veio a lume a Lei nº 13.869/2019, para redefinir o controle penal do abuso de autoridade. E, todavia, não escapou das polêmicas.

Já se acumulam no Supremo Tribunal Federal as ações diretas de inconstitucionalidade que atacam vários de seus dispositivos, como as promovidas pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal (ANAFISCO) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), esta secundada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA).

Se não bastasse, a mídia tem noticiado sucessivos ensejos de impactos negativos da nova lei –que ainda nem entrou em vigor– em processos judiciais concretos.

Assim, por exemplo, em 30 de setembro, na cidade de Senhor do Bonfim (BA), um juiz criminal deixou de converter duas prisões em flagrante em prisões preventivas, ao argumento de que poderia vir a infringir os termos da Lei 13.869/19.

No mesmo dia, em Japeri (RJ), o juiz deixou de proceder à penhora online de dinheiros do devedor com fundamento semelhante: o sistema Bacenjud, uma vez acionado pelo juiz, bloqueia imediatamente todas as contas ativas do devedor, nos limites do valor indicado, o que poderia configurar excesso de penhora e, por conseguinte, a conduta objetiva do artigo 36 da nova lei. E assim sucessivamente.

A rigor, porém, não haverá crime de abuso de autoridade se, nos termos dos parágrafos do art. 1º da Lei 13.869/19, a autoridade não agir com a “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”; e, para mais, tampouco haverá crime se se configurar, no âmbito do processo, mera divergência de interpretação de lei ou de avaliação de fatos e provas (como, p. ex., se o juiz de 1º grau decretar a prisão preventiva, entendendo presentes os requisitos do art. 312 do CPP, e o tribunal entender por bem liberar o réu, por os entender ausentes).

Não poderá haver persecução criminal em casos de equívocos, erros “in judicando” ou divergências de entendimentos. Nesse sentido, aliás, a nova lei aproximou a noção de abuso de autoridade com a de prevaricação em sentido amplo: deve-se coibir o desvio da função e a traição do interesse público; não o mister de interpretar a lei e valorar os fatos, ainda que por uma linha minoritária ou depois vencida.

Há, porém, ensejos e excessos perigosos no texto em vigor (notadamente após a queda dos vetos do presidente da República).

A uma, parece claro que a nova legislação alimentará uma crescente litigiosidade endoprocessual, especialmente em audiências (e isso é particularmente problemático em procedimentos nos quais predomina a oralidade, como nos processos penais e trabalhistas), notadamente pela positivação do crime de violação de prerrogativas de advogados.

Além disso, bem se sabe que o Estado Democrático de Direito não convive bem com tipos penais excessivamente abertos, cujas redações instilem insegurança quanto às condutas que possam ou não estar ali contempladas. É o que se denomina de taxatividade penal; e, a respeito desses excessos, o próprio STF já se manifestou (v., p. ex., HC 155.020).

O que se deve entender, p. ex., como prisão decretada em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”? Ou o que se poderá compreender como “liminar ou ordem de habeas corpus manifestamente cabível”, para se apontar como crime o respectivo indeferimento?

Ou, ainda, o que será uma condução coercitiva “manifestamente descabida”? A desconformidade ou o (des)cabimento deverão ser “manifestos” para quem?

Ou ainda, no exemplo antes reportado, o que se entenderá por quantia penhorada ou indisponibilizada que extrapole “exacerbadamente” o valor da dívida? Aquela que a ultrapasse em 100%? Talvez 50%?

Tipos penais devem evitar, na medida do possível, elementos normativos que reconduzam às teias inexpugnáveis do psicologismo judiciário. É dizer: a lei penal não pode ser tão “flexível” hermeneuticamente, a ponto de se resolver, no fim das contas, com a definição judiciária do que é virtualmente insondável: saber se, no momento em que agiu, o réu estava ou não imbuído por maus sentimentos (“capricho”, por exemplo).

No célebre discurso de convocação dirigido à turma de graduandos de 2019 da Universidade de Duke, o reitor Steve Nowicki registrou fazer todo sentido questionar a autoridade, se a consideramos infundada, exercida injustamente ou de qualquer modo desatinada. Mas, ao questionar, é preciso estar disposto a encontrar respostas.

É preciso entender, mais, que nem sempre as respostas coincidem com o que se imaginou inicialmente.

Em relação à Lei 13.869/2019, a pergunta certa a fazer, agora, diz com as suas consequências. Leis devem servir para reformar positivamente a realidade, não para promover simbologias políticas. Especialmente as penais.

(*) Guilherme G. Feliciano é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (convocado para atuação junto à 6ª Câmara do TRT 15); Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-2019).

Alamiro V.S. Netto é advogado, professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.