Gilmar Mendes, prisão em segunda instância e presunção de impunidade

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, tem sido o grande pregoeiro em defesa do trânsito em julgado para a execução da prisão.

Mendes atropela as boas práticas –antecipa a intenção de voto, por exemplo– e permite a interpretação de que muda suas convicções ao sabor dos interesses do momento. Critica colegas magistrados e ofende membros do Ministério Público, esquecendo que a urbanidade é requisito exigido de quem veste a toga.

O ministro está empenhado em evitar as prisões após condenação em segunda instância, contrariando seu voto de 2016, que, por sua vez, mudou o que decidira em 2009.

“Não se conhece no mundo civilizado um país que exija o trânsito em julgado”, afirmou Mendes, em 2016, segundo lembra a Crusoé. (*)

Naquele mesmo ano, uma jurista respeitada pelos criminalistas também mudou de opinião. Em entrevista ao Consultor Jurídico, a professora Ada Pellegrini Grinover fez uma nova interpretação da presunção de inocência. Aderiu ao entendimento de que é possível a prisão depois da sentença, antes do trânsito em julgado.

“As situações mudam e você tem de interpretar a Constituição e as leis de acordo com a situação atual”, afirmou a processualista. “Primeiro, o Supremo entendeu que podia prender, depois vieram os garantistas, dizendo que não pode prender – eu mesma já sustentei essa tese. E agora mudou de novo a interpretação”, admitiu Grinover.

O STF prosseguirá, nesta semana, o julgamento de três ações que tratam da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.

A seguir, o entendimento de Gilmar Mendes em três momentos:

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“Esgotadas as instâncias ordinárias, com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária.

Nesse estágio, é compatível com a presunção de não culpabilidade determinar o cumprimento das penas, ainda que pendentes recursos.”  (“Curso de Direito Constitucional“, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco)

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“No julgamento do HC 92.578 (Rel. Min. Ricardo Lewandowski), o Supremo Tribunal Federal discutiu o cabimento da prisão do réu para cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O núcleo da questão que se discutia naquele ‘writ’ era a compatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e a origem de recolhimento, para cumprimento da pena, quando ainda não houvesse decisão judicial transitada em julgado contra o acusado.

Naquela assentada, considerei que a ordem de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sem expressa e fundamentada indicação dos requisitos e fundamentos da prisão preventiva do art. 312 do CPP, ofende diretamente o princípio de presunção de não culpabilidade de que trata o art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, razão pela qual concluí pelo deferimento da ordem de habeas corpus.

Evidentemente, presentes os pressupostos para a prisão preventiva, poderá o juiz ou o Tribunal decretá-la a qualquer momento, independentemente do trânsito em julgado.” (“Estado de Direito e Jurisdição Constitucional“, Gilmar Mendes, 2002-2010)

Nota de rodapé: Em 12.2.2009, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos votos do Rel. Min. Ricardo Lewandowski, concedeu habeas corpus, vencidos os ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, estando ausente, justificadamente, o Min. Eros Grau (DJ de 24.4.2009)

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Resumo do voto de Gilmar Mendes, no julgamento em 5 de outubro de 2016 –conforme anotações do STF:

O ministro Gilmar Mendes avaliou que a execução da pena com decisão de segundo grau não deve ser considerada como violadora do princípio da presunção de inocência. Ressaltou que, no caso de se constatar abuso na decisão condenatória, os tribunais disporão de meios para sustar a execução antecipada, e a defesa dispõe de instrumentos como o habeas corpus e o recurso extraordinário com pedido de efeito suspensivo. O sistema estabelece um progressivo enfraquecimento da ideia da presunção de inocência. “Há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau”, afirmou. Segundo o ministro, países extremamente rígidos e respeitosos com os direitos fundamentais aceitam a ideia da prisão com decisão de segundo grau.

Eis trecho de editorial da Folha, em 22 de março de 2018, sobre o assunto:

“Há bons motivos para aceitar a tese —vencedora no plenário por 6 votos a 5— de que alguém já condenado por dois tribunais não teria por que ter sua inocência plenamente presumida.

Figuras de alta influência e de grande poder aquisitivo apresentam infindáveis recursos, de ordem puramente formal, para que o processo se prolongue, não raro até a prescrição da pena“.

Em fevereiro de 2009, este Blog publicou texto sob o título “Presunção de impunidade”, ao comentar a decisão do STF determinando que, para alguém ser preso, o processo tem que percorrer todas as instâncias, até chegar ao Supremo.

Eis trechos do post:

“O Supremo vem chamando para si decisões tidas como medidas capazes de suprir omissões dos Três Poderes, como a vergonhosa situação do sistema carcerário. Não seria apropriado, contudo, apontar essa triste realidade para justificar o recente julgamento. Não são os presos por “crimes de bagatela”, como furtos de escova de dentes e de chinelos, lembrados pelo ministro Celso de Mello, que entopem os tribunais de recursos. Tem faltado ao Judiciário, nos vários graus, disposição para conter a avalanche de recursos protelatórios em benefício de réus que podem pagar bons advogados –seja para a prática de chicanas ou uso de recursos legais disponíveis para evitar o cumprimento da pena.

Os aplausos de criminalistas ao julgamento, reafirmando a presunção da inocência, apenas reforçam o fato de que esse princípio encontra-se na Constituição desde 1988.

(…)

O que surpreendeu no julgamento (…) foi o alerta de ministros do próprio STF, talvez preocupados com os efeitos do passo dado pela Corte. Entre eles, Joaquim Barbosa, coerente com manifestações anteriores. (…) Barbosa advertiu para a criação de um sistema penal de “faz-de-conta”, em que o processo jamais chegará ao fim: “Nós temos que assumir politicamente o ônus por essa decisão”.

(…)

 Brasília parece ter ficado mais distante do país real. A sociedade imaginou que alguma coisa estava avançando, quando a Justiça Federal levou ao banco dos réus os responsáveis, muito tempo antes, pela monumental lavagem de dinheiro e evasão de divisas no caso Banestado. Ou quando o processo do mensalão resultou em ação penal contra parlamentares da base de apoio do governo Lula.

É preocupante verificar a reação dos dois magistrados que cuidaram desses casos, diante da última decisão do Supremo.

“É um retrocesso. A sensação de impunidade vai aumentar”, diz o juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa (mensalão). Para ele, os principais beneficiados serão “aqueles que certamente têm condições de contratar bons advogados e que se encontram envolvidos em delitos de grande repercussão, tais como, colarinho branco, lavagem de dinheiro, corrupção etc”.

“Estou me questionando, como juiz criminal, se vale a pena dar impulso a ações penais em relação a crimes de colarinho branco já que, de antemão, sei que estão fadadas ao fracasso”, diz Moro (Banestado).

Como admitem os dois juízes, embora a decisão do STF seja “juridicamente sustentável” (Costa) e “juridicamente razoável” (Moro), a bandidagem de alto calibre, que não costuma ser consultada pela mídia para emitir sua opinião, deve estar exultante.

(*) Veja aqui como votaram, em 2016, os ministros favoráveis à prisão depois da condenação em segundo grau.