Dólares na cueca e vestígios do mensalão

O que mais surpreende: um aloprado tentar viajar com dólares na cueca ou o fato de um inquérito policial sobre essa malfeitoria ter demorado 14 anos sem chegar a uma conclusão?

No dia 8 de julho de 2005, José Adalberto Vieira da Silva, assessor parlamentar do deputado federal José Nobre Guimarães (PT-CE), foi preso em flagrante no aeroporto de Congonhas (SP), quando tentava viajar para Fortaleza.

Então secretário de organização do Partido dos Trabalhadores no Ceará, ele transportava R$ 209 mil numa maleta de mão e US$ 100 mil junto ao seu corpo, dinheiro sem comprovação de origem e registro de câmbio.

O futuro desse caso dependerá da disposição do novo procurador-geral da República, Augusto Aras, de dar continuidade às investigações sobre um incidente ocorrido na época do mensalão e que lembra episódios descobertos pela Lava Jato.

Esse é o ponto central da decisão de 30 páginas do juiz federal Danilo Fontenelle, titular da 11ª Vara Federal do Ceará. Na última segunda-feira (21), ele rejeitou o pedido de arquivamento do inquérito policial requerido pelo Ministério Público Federal, convencido de que há fortes indícios de corrupção e lavagem de dinheiro.

Nesses casos, o Código de Processo Penal prevê que o juiz deve enviar os autos para a Procuradoria Geral da República.

Aras poderá pedir a um subprocurador-geral para fazer a análise detalhada do processo, diante das suspeitas de corrupção sistêmica e lavagem de dinheiro vislumbradas pelo juiz cearense.

Nessa hipótese, se o desfecho ficar muito distante, esses dois crimes podem prescrever.

Aras poderá determinar o arquivamento do caso.

Nessa hipótese, enfrentará, além das prováveis críticas, uma situação curiosa: o dinheiro apreendido será devolvido ao dono da cueca? Os valores estão à disposição da 11ª Vara Federal do Ceará desde 2008, e encontram-se em depósito judicial.

Deputado nega envolvimento

Em julho de 2005, o deputado José Guimarães foi ouvido no inquérito e afirmou “não saber a origem do dinheiro apreendido com Adalberto, negando qualquer envolvimento com o fato”.

José Guimarães é irmão do ex-deputado federal José Genoino Neto, ex-presidente do PT, que foi ouvido no inquérito e também disse não ter nada com o ocorrido.

Em 31 de maio de 2010, a autoridade policial indicou a participação do deputado José Guimarães nos fatos e o seu gozo de foro privilegiado. O processo subiu para o STF. Em 2018, o ministro Luís Roberto Barroso entendeu que “a conduta imputada ao investigado se deu em momento anterior ao exercício da função de deputado federal e sem vínculo com o exercício do cargo”. Os autos desceram para a vara federal no Ceará.

No dia 21 de junho de 2012, o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, excluiu o deputado do polo passivo numa ação de improbidade que tramitou na 10ª Vara Federal do Ceará. Essa decisão transitou em julgado.

Em nota publicada neste Blog, a assessoria do parlamentar sustenta que José Guimarães foi inocentado pelo STJ. [veja aqui]

O juiz Fontenelle lembra que a questão penal continua aberta por conta da rejeição do arquivamento do inquérito policial.

Cronologia dos fatos

Aparentemente, nesses 14 anos a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República não atuaram com a diligência necessária.

Fontenelle registra em sua decisão que a tramitação do inquérito policial se dá entre a Polícia Federal e o Ministério Público, ficando vinculado ao Judiciário apenas por questões de organização e prevenção.

Os depoimentos mais importantes foram colhidos no início das investigações, em São Paulo e no Ceará. Depois, vieram as longas análises do material apurado na ação de improbidade.

Fontenelle foi um dos primeiros juízes a assumir a titularidade de vara especializada em crimes financeiros e lavagem de dinheiro.

É oriundo do primeiro grupo de juízes de varas especializadas do qual fazem parte, entre outros, Sergio Moro (Banestado, Lava Jato), Jorge Gustavo Macedo Costa (mensalão), Fausto Martin De Sanctis (Castelo de Areia, Satiagraha) e Abel Gomes (Banco Nacional).

São juízes técnicos, costumam decidir sem retardar o andamento dos processos. Fontenelle analisou os 15 volumes e 37 apensos do inquérito sobre os dólares na cueca em três meses.

A cronologia da tramitação do inquérito confirma que os autos ficaram durante oito anos no Supremo Tribunal Federal:

8 de julho de 2005 – prisão em flagrante de José Adalberto Vieira da Silva. Autos tramitam inicialmente na 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo

27 de março de 2008 – Autos são distribuídos à 11ª Vara Federal do Ceará

28 de junho de 2010 – Autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal

7 de julho de 2010 – Processo é registrado no STF como Inquérito nº 2.994

29 de agosto de 2018 – Ministro Luís Roberto Barroso encaminha os autos à 11ª Vara Federal do Ceará

25 de setembro 2018 – Vista dos autos ao Ministério Público Federal

20 de junho de 2019 – Procurador da República Régis Richael Primo da Silva requer o arquivamento do inquérito

21 de outubro de 2019 – Juiz federal Danilo Fontenelle rejeita pedido de arquivamento

O Ministério Público Federal agora tem a chance de resgatar e esclarecer uma história incompleta e controvertida, que veio à tona na época do julgamento do mensalão.

Nas últimas páginas de sua decisão, o juiz Fontenelle menciona depoimentos de um dos investigados, ouvido pela Polícia Federal em 15 de setembro de 2009.

Ele “confirmou o teor das declarações prestadas ao Ministério Público Federal, aduzindo acreditar que o dinheiro apreendido tem origem no caixa geral do Partido dos Trabalhadores, administrado por Delúbio Soares, e que tinha em Marcos Valério, a pessoa que legalizava o dinheiro”.

Esses fatos reforçaram a convicção do juiz Fontenelle de há “indícios mais que suficientes para ser aprofundada a hipótese de corrupção sistêmica estrutural”.

O magistrado concluiu:

“Vislumbro, pois, que o fato de um assessor parlamentar ter sido preso com cerca de atuais R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) sem origem ou destino conhecidos nem explicação plausível ou verossímil, indica indícios suficientes da ocorrência de modalidade até então não conhecida de corrupção sistêmica estrutural, qual seja a de criação, manutenção e preservação de uma rede de apoio político/administrativo com o fito de favorecimento de grupos mediante atos indefinidos e atemporais, muito característico das organizações criminosas de matiz mafioso, onde o silêncio, o segredo, as aparências e os disfarces são elementos primordiais à sua própria criação, manutenção, desenvolvimento e reprodução.”