O tico-tico e a Lava Jato
A abertura de Processo Administrativo Disciplinar para apurar a conduta do procurador da República Charles Stevan da Mota, que perdeu prazo para oferecer uma denúncia sobre crime ambiental –apreensão de pássaros–, foi considerada uma sinalização de como o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) sob o comando do procurador-geral Augusto Aras poderá agir em casos mais relevantes.
“Se por um tico-tico, Charles vai sofrer sanção… É para mostrar o que o conselho fará com Deltan Dallagnol”, sugere a procuradora regional da República aposentada Ana Lúcia Amaral, de São Paulo, ao lembrar que o chefe da força-tarefa da Lava Jato deverá ser julgado pelo CNMP.
O procurador-geral diz que “o colegiado agiu com normalidade” ao julgar a representação contra Charles Pessoa.
“Não houve antecipação de juízo de valor. É muito cedo para entrar no mérito”, afirma Aras.
A instauração do processo disciplinar foi decidida por unanimidade, nesta segunda-feira (28), durante julgamento de representação apresentada pelo juiz da 1ª Vara Federal de Petrópolis/RJ, Alcir Luiz Lopes Coelho.
Aras convocou sessão extraordinária para julgar o caso.
Há informações de que o CNMP estaria sendo cobrado por membros do Judiciário e do Legislativo para punir Dallagnol, como forma de evitar a criação de instrumentos para cercear a atuação do Ministério Público. A conferir.
A expectativa em torno do julgamento também se deveu ao clima de confronto entre o magistrado e procuradores da República. Várias manifestações nos autos ressaltam a série de desentendimentos nos últimos anos.
Nas informações que prestou ao relator, o procurador anotou “o péssimo relacionamento institucional que o juiz federal Alcir Luiz Lopes Coelho trava com todos os membros do Ministério Público Federal”. [veja aqui]
O desconforto é confirmado por membros do MPF.
O procurador de Petrópolis reproduziu trecho de manifestação do procurador regional Rogério Nascimento, ex-conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para quem o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho “em mais de uma oportunidade em diferentes órgãos jurisdicionais, vem sendo ácido crítico da atuação de variados membros do Ministério Público”.
Alguns colegas de Charles Pessoa admitem que o procurador tem problemas de produtividade, mas ressalvam que o MPF é dedicado ao ofício e honesto.
De acordo com a representação oferecida pelo juiz Alcir Coelho, entre 17 de maio e 7 de novembro de 2018, o procurador da República se omitiu em se manifestar nos autos de termo circunstanciado, deixando prescrever a pretensão punitiva contra um investigado.
O juiz acrescentou que “o mesmo procurador procedeu de forma semelhante com relação ao descumprimento dos prazos em outros feitos [processos]”.
O relator do caso, conselheiro Sebastião Caixeta, registrou que, entre a autuação do procedimento e a manifestação final do membro do Ministério Público Federal (MPF), decorreu o prazo de mais de dois anos, tendo ficado o processo paralisado por período superior a cinco meses, “o que não se coaduna com o princípio da duração razoável dos procedimentos administrativos”. [veja aqui]
Como este Blog registrou, o fato gerador da reclamação ocorreu em 2016, quando dois rapazes foram flagrados “pegando pássaros tico-ticos” em Petrópolis, crime contra a fauna.
“Suspeito que Charles deve ter sido identificado com o grupo do Ministério Público que não aceita Aras”, diz Ana Lúcia Amaral.
A escolha de Aras, pelo presidente Jair Bolsonaro, para suceder a Raquel Dodge gerou insatisfação no MPF. Pesou o fato de que o novo PGR fez críticas à lista tríplice da entidade quando anunciou que disputaria o cargo sem submeter o seu nome à votação da categoria.
“Charles trabalha bem na área cível e criminal. Ficou sete anos no Mato Grosso do Sul. Eu o acompanhava nas ações envolvendo matéria indígena. Ele encarou pauleiras”, diz a procuradora Amaral. Ela atuou na Procuradoria Regional da República da 3ª Região (SP-MS).
“Ele trabalhava muito e bem. Talvez não dê para fazer tudo a toque de caixa. Quantos procuradores oficiam em Petrópolis? Eles têm que acumular com outras procuradorias?”–pergunta.
Na manifestação enviada previamente ao relator, o procurador Charles Pessoa informou que regularizou os processos judiciais e mencionou a carga horária de trabalho, “que supera 10 horas diárias”.
Argumentou ainda com a substituição cumulativa que faz em outros dois ofícios da Procuradoria da República em Petrópolis.
A APNR (Associação Nacional dos Procuradores da República) não quis se manifestar sobre a abertura do processo disciplinar contra Charles Pessoa. Deltan Dallagnol não quis comentar a avaliação feita por Ana Lúcia Amaral.