‘Carteira verde e amarela’ e ovos quebrados

Sob o título “MP 905: Os ovos quebrados da política econômica”, o artigo a seguir é de autoria de Guilherme Guimarães Feliciano e Paulo Douglas Almeida de Moraes (*)

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“Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos”, eis a máxima quase maquiavélica que parece compor o leitmotiv da atual política econômica nacional.

Não vamos falar de economia. No campo do direito, porém, a questão é saber (a) se esses ovos podem ser quebrados; e (b) se a receita da omelete atende às regras da casa (inclusive à vista de omeletes anteriormente servidos).

Passados dois anos de vigência da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), os frutos prometidos à altura ainda não foram alcançados: não tivemos recuperação dos empregos (seguimos na casa dos treze milhões de desempregados e houve aumento sensível do trabalho informal e dos contratos precários, como no caso dos trabalhadores intermitentes), não houve segurança jurídica (apenas no STF foram mais de vinte ações diretas de inconstitucionalidade a respeito das “novidades”) e a queda vertiginosa de ações trabalhistas talvez se deva à violação da garantia constitucional de acesso à justiça (o que o STF também dirá, na ADI 5766).

Agora, realizando uma promessa de campanha, o governo traz ao mundo o “contrato de trabalho verde e amarelo”, por força da MP 905, do último dia 11 de novembro. E, com ele, traz uma série de outras profundas alterações na legislação trabalhista em vigor.

A bem dizer, inaugura uma segunda reforma trabalhista, sem ao menos termos um diagnóstico claro dos sucessos e malogros daquela primeira. E, nessa vereda, quebra muitos ovos. Alguns, a nosso ver, não poderiam ser quebrados. Mas o Congresso Nacional o dirá. E, depois, o Poder Judiciário brasileiro. Vejamos alguns exemplos.

A “carteira verde e amarela” foi concebida como um programa temporário (limitado a 31/12/2022), destinado a incrementar a mão de obra contratada, com base na média de trabalhadores registrados de janeiro a outubro de 2019.

Renova-se, no particular, a fracassada experiência da Lei n. 9.601/98 (que, do mesmo modo, visou incrementar o número de contratações temporárias por meio de desonerações da folha de salários e redução das alíquotas previdenciárias e de FGTS).

Nesse encalço, cria uma subcategoria de trabalhadores, que –ao contrário do que se alardeia– não terá todos os direitos constitucionais assegurados, em pé de igualdade com os demais empregados, exatamente porque (1) o seu FGTS – que já se considerou espécie de salário diferido – será menor (2% a.m. contra 8% a.m. dos demais), ainda que desempenhe as mesmas funções de outro empregado, mais antigo, no mesmo estabelecimento; (2) a indenização ao final do contrato será de 20% sobre o FGTS (e não de 40%, como assegura o art. 10, I, do ADCT, a todos os trabalhadores).

Ora, o art. 7º da Constituição, ao dispor sobre os direitos sociais mínimos de trabalhadores urbanos e rurais, não estabelece distinções dessa natureza; ao contrário, o seu inciso XXX veda diferenças de salários, funções e critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. A lei pode discriminar onde a Constituição não diferencia?

Sob o aspecto previdenciário, o desempregado beneficiário do seguro-desemprego passará a contribuir para o Regime Geral de Previdência Social.

Tarifam-se, agora, recursos previdenciários de subsistência. E, na outra ponta da corda – a do empregador -, promove-se a mais agressiva desoneração da folha de salários dos últimos tempos, com renúncia fiscal da contribuição patronal ao INSS (20% sobre salários de contribuição) em favor de quem contratar empregados de tipo “verde e amarelo”.

O trabalhador mais carente será duplamente penalizado: enquanto desempregado, porque seu benefício líquido será menor, e adiante, na aposentadoria –se lograr se aposentar, à vista da recente EC 103/19–, porque as contribuições incidentes sobre o seguro-desemprego (geralmente menores que as contribuições havidas sob relação de emprego) tenderão a rebaixar a média para o cálculo dos proventos.

Há vários outros aspectos que devem merecer a atenção dos parlamentares.

O texto parece dispor, por exemplo, que não haverá correção monetária para os créditos trabalhistas entre a lesão do direito e a condenação perante a Justiça do Trabalho (porque dispõe aplicar-se o IPCA-E “entre a condenação e o cumprimento da sentença”), o que seria notoriamente grave, violando o próprio direito de propriedade.

Enfraquece o instituto do termo de ajustamento de conduta, uma das suas mais importantes ferramentas do Ministério Público do Trabalho para fazer valer a legislação social.

Elimina praticamente um direito histórico dos bancários –o da jornada de seis horas–, sem cogitar da sua óbvia consequência no âmbito dos contratos individuais de trabalho: aumentar automaticamente o salário-hora (porque se o bancário for obrigado a trabalhar mais horas pelo mesmo salário, estará malferida a garantia constitucional da irredutibilidade dos salários). E outras disposições de mesma cepa, que não resistem ao olhar jurídico mais atento.

Durante o século XVIII, o grande Diderot afirmou que, a partir da observação de um ovo, poderíamos derrubar toda a teoria teológica e todos os templos do mundo. Eram tempos iluministas: o “ovo”, nesse contexto, era apenas um signo para a boa razão. Nos debates a seguir sobre a MP 905, esperemos que ao menos esse ovo não se quebre.

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(*) Guilherme G. Feliciano é Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

Paulo Douglas Almeida de Moraes é procurador do Trabalho da 24ª Região. Ex-Presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho.