Supremo pacifica jurisprudência, mas apoquenta o cidadão

Ao decidir por maioria que o repasse de dados sigilosos para o Ministério Público e a polícia sem autorização judicial é um procedimento constitucional, o Supremo firmou jurisprudência.

Pacificou o entendimento da Corte, como se diz, mas durante seis meses apoquentou, aporrinhou, atormentou, azucrinou o cidadão comum, leigo.

Apesar das várias manifestações de especialistas reafirmando que o compartilhamento de dados era uma prática usual, a indefinição do STF nesse período desnorteou membros de órgãos de investigação, como Ministério Público, Receita Federal e Polícia Federal.

Nesta quarta-feira, os ministros decidiram que a Receita Federal e a UIF (Unidade de Inteligência Financeira, o antigo Coaf) podem continuar compartilhando com o Ministério Público e a polícia relatórios com dados sigilosos de contribuintes sem necessidade de autorização judicial.

Em julho, em decisão monocrática –ou seja, individual, sem que os demais integrantes da corte tivessem a chance de opinar– o presidente Dias Toffoli paralisou mais de 900 processos em todo o país. O ministro determinou ao Coaf a entrega de dados fiscais de mais de 600 mil pessoas –depois, recuou.

A decisão provisória de Toffoli, naquela ocasião, atendeu a um pedido do senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro, suspeito de desviar salários de servidores de seu antigo gabinete na Assembleia fluminense.

Em artigo publicado na Folha nesta quarta-feira, Rubens Glezer e Luíza Pavan Ferraro, da FGV-Direito SP, concluem que “o Supremo nada mais fez do que resolver um problema que ele próprio criou”.

Quando determinou a paralisação de todas as investigações baseadas em dados fornecidos pelo Coaf, Toffoli era relator de um recurso extraordinário que envolvia a dúvida sobre o compartilhamento de dados bancários e fiscais obtidos pela Receita Federal com o Ministério Público, sem autorização judicial.

“Apesar de ser uma decisão sobre compartilhamento de dados sigilosos com órgãos de investigação, o recurso não tratava em nada sobre o Coaf. O fato de a suspensão ter sido pleiteada pelo senador Flávio Bolsonaro, durante o plantão judicial de Toffoli, aumentou a controvérsia”, afirmam Glezer e Ferraro.

Os autores afirmam que “em razão de uma decisão monocrática de Toffoli, o STF atraiu para si mais polêmicas e críticas apenas para que, seis meses depois, a maioria dos ministros considerasse a ampliação das suspensões inadequadas e a maioria considerasse, ao final, que tais práticas de compartilhamento são claramente constitucionais”.

O tribunal derrubou a liminar de Toffoli, que suspendia investigações em todo o país envolvendo compartilhamento de informações sigilosas.

Quando quis investigar fake news contra os membros da corte, Toffoli não acionou o Ministério Público. Designou um colega, Alexandre de Moraes, para tocar o inquérito. Não sorteou o relator.

Não foram poucos os alertas de que o ministro estava arrastando o Supremo para um desgaste sem precedentes, fragilizando ainda mais a imagem da Corte.

“No bojo de um inquérito sem pé e sem cabeça, ele determina ao Coaf a entrega de dados fiscais de mais de 600 mil pessoas”, criticou Eliana Calmon. “Será que têm 600 mil indiciados no inquérito estapafúrdio? Na verdade, parece que ele quer ter todas as pessoas sob seu controle”, afirmou a ex-corregedora nacional.

““Há um direito de sigilo das pessoas a proteger e a intervenção nesse direito deve ser a mínima possível. Cada autoridade que tem acesso àquela informação é um devassamento do sigilo. Quando o ministro pede toda a movimentação de 600 mil pessoas, isso é evidentemente desnecessário para a finalidade que ele deseja. O meio utilizado é desproporcional em relação ao fim”, afirmou Pedro Estevam Serrano, advogado e professor de direito constitucional.

“O que o ministro está fazendo é uma devassa em dados fiscais e de inteligência financeira. (…) Bastaria ter ido ao Coaf e perguntado como é feito [o relatório de inteligência financeira]. O ministro tem que entender o procedimento”, afirmou Luiza Frischeisen, coordenadora da câmara criminal do Ministério Público Federal.

“A decisão proferida cria exceção que não existe na prática forense”, sustentou Paulo Cezar dos Passos, procurador-geral de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso do Sul e presidente do CNPG (Conselho Nacional de Procuradores Gerais).

Como este Blog já observou, “apesar de o ministro ter recuado, anulando sua decisão de requerer os dados sigilosos de transações de 600 mil pessoas físicas e jurídicas, o homem da rua deve se perguntar o que levou o presidente do STF a se sentir tão poderoso”.

No discurso de posse como presidente do STF, em setembro de 2018, Dias Toffoli afirmou que pretendia pacificar conflitos. “Nós, juízes, precisamos ter PRUDÊNCIA” [grifou o ministro].

Aparentemente, Toffoli agravou conflitos e foi imprudente.