Trinta anos de reportagens envolvendo o ex-juiz João Carlos da Rocha Mattos
Há 30 anos, o juiz João Carlos da Rocha Mattos proferiu a primeira das várias decisões controvertidas a partir de investigações jornalísticas realizadas por este repórter.
No dia 3 de outubro de 1989, Rocha Mattos rejeitou a denúncia oferecida no chamado “Caso Cobrasma”. No dia 7 de dezembro de 1989, negou recurso contra aquela decisão e enviou os autos ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
Dez anos depois, no dia 6 de dezembro de 1999, Rocha Mattos mandou arquivar o inquérito policial, por prescrição. (*)
Na primeira edição de 1987, a Folha revelou que a Cobrasma, empresa do então presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Luís Eulálio de Bueno Vidigal Filho, causara forte prejuízo a 124 instituições financeiras e a milhares de investidores.
Em junho de 1986, a empresa colocara no mercado 25,5 bilhões de ações, operação estimulada por projeções irreais de lucro, com apoio [garantia firme] dos bancos Bradesco, BCN e Crefisul.
A emissão ainda estava em curso quando, em setembro, a empresa anunciou redução dos lucros previstos. No dia 31 de dezembro de 1986, informou, em comunicado escondido em suplemento da Gazeta Mercantil, que encerraria o ano com prejuízo.
Rocha Mattos considerou inepta a denúncia contra Vidigal, que foi acusado de crime contra o sistema financeiro, porque a peça não alcançava os diretores dos bancos.
A denúncia fora oferecida em 22 de junho de 1989 pelo então procurador da República Antônio Carlos Ramozzi. Rocha Mattos rejeitou a denúncia em 3 de outubro de 1989, quando Ramozzi estava em férias. O substituto, procurador Antônio Augusto César, perdeu o prazo para recorrer e foi alvo de sindicância.
Em outubro de 2003, quando foi deflagrada a Operação Anaconda –que desbaratou quadrilha que negociava decisões judiciais, e levou Rocha Mattos à prisão–, o Ministério Público Federal descobriu que Augusto César usava uma sala no escritório do advogado Affonso Passarelli Filho, considerado uma espécie de sede central da organização criminosa.
No dia 12 de setembro de 2003, ou seja, às vésperas da operação, uma escuta telefônica da Polícia Federal captara Passarelli dando instruções a um funcionário para retirar “as pastas do Dr. João” do escritório de advocacia.
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Só vim a conhecer Rocha Mattos pessoalmente em 15 de abril de 1991, ao depor como testemunha no processo criminal movido pelo presidente Fernando Collor de Mello contra o diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, e outros três jornalistas sob a acusação de calúnia.
O processo fora instaurado por causa de duas notas que publiquei na coluna “Painel Econômico”, julgadas ofensivas por Collor. A meu ver, tratava-se de uma tentativa de intimidação, o que sustentei no depoimento. Otavio Frias Filho não se encontrava na redação quando as notas foram publicadas.
Os advogados da Folha arguiram a suspeição de Rocha Mattos, que foi afastado do caso. A sentença, favorável ao jornal, foi proferida pelo juiz substituto Nelson Bernardes de Souza. Collor não recorreu.
“Eu já o conhecia de nome e a sua coluna. Foi um prazer conhece-lo pessoalmente”, disse o juiz, depois do meu depoimento.
Rocha Mattos viria a me dizer, depois, que, se continuasse à frente do processo, o resultado teria sido desfavorável aos jornalistas da Folha.
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Em 2 de junho de 1991, a Folha revelou que o governo Orestes Quércia (PMDB) firmara oito contratos, no total de US$ 315 milhões, para a importação –sem licitação– de equipamentos israelenses para as universidades e polícias, por meio de operação triangular.
O superfaturamento das aquisições foi revelado pelo jornal e confirmado, posteriormente, pelo Serviço de Criminalística da Polícia Federal e por uma comissão de peritos nomeada pela Justiça.
Sem permitir que o Ministério Público Federal se pronunciasse sobre novas provas, Rocha Mattos remeteu os autos para a Justiça estadual, declarando-se incompetente para julgar o processo. Excluiu previamente das investigações Quércia e seu sucessor, Luiz Antônio Fleury Filho.
Um mês antes de Rocha Mattos isentar Quércia e Fleury, o jornal reproduzira fac-símile de despacho do então governador Quércia, ampliando em US$ 100 milhões os recursos para a operação suspeita.
O STJ rejeitou a denúncia de estelionato contra Quércia.
O Órgão Especial do TRF-3 viria a receber, por unanimidade, a denúncia contra ex-secretários e empresários que participaram da operação. Em 2002, Rocha Mattos, numa canetada, remeteu os autos para o STJ, onde o caso seria arquivado com o beneplácito do então PGR, Geraldo Brindeiro, que ficou conhecido como “engavetador-geral da República”.
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Naquele mesmo ano, publicamos várias reportagens sobre disputas internas no TRF-3. Rocha Mattos telefonou-me. Perguntou se eu me lembrava dele. Cumprimentou-me. Disse que as reportagens eram “salutares” para a Justiça.
Ele enviou cópias de representações que oferecera ao Superior Tribunal de Justiça e ao TRF-3 contra ministros e membros do tribunal regional.
Foi a partir dessas representações que tomei conhecimento de investigações que estavam sendo feitas em sigilo sobre Rocha Mattos no TRF-3.
Avisei a Rocha Mattos que estava digerindo a papelada e que descobrira acusações sobre as quais ele teria, mais adiante, que se manifestar.
“Só espero que o senhor não me transforme de vítima em réu”, disse.
Foi com base nesse material que, meses antes da Operação Anaconda, a Folha anteciparia fatos que só seriam alardeados no final de outubro de 2003.
Depois de pesquisar várias notícias-crime oferecidas por Rocha Mattos contra membros do TRF-3, encontrei as primeiras indicações de que o juiz respondia a inquéritos civis sigilosos naquele tribunal.
No dia 23 de março de 2003, um domingo, a Folha publicou reportagem de duas páginas com os seguintes títulos: “Juiz é alvo de investigação criminal no TRF-3”; “Apuração tem origem em depoimento de ex-estagiária que teria revelado ‘fatos delituosos’ ligados a Rocha Mattos”; “Juiz diz que gravação é prova ilícita”; “Juiz afirma que foi apenas inquilino de apartamento comprado por ‘offshore’ e que devolveu à Polícia Federal placas de uso reservado”.
Dias antes da publicação da reportagem, Rocha Mattos atendeu-me em seu gabinete. A sala estava vazia, com alguns documentos encaixotados. Em sua mesa, havia um cinto de couro. O juiz tentou fazer piada: “Pode ficar tranquilo, isso aí não é para o senhor, não”.
Ele parecia desconfortável, mas em nenhum momento –como, aliás, em nenhuma outra ocasião– foi agressivo com o repórter. Devo dizer que nunca recebi qualquer ameaça do ex-juiz ou de outros réus da Anaconda.
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No dia seguinte à deflagração da Operação Anaconda, localizei Rocha Mattos, por telefone. Sugeri que concedesse uma entrevista exclusiva, pois o jornal não conseguira ouvi-lo na véspera, tendo publicado o contraditório de outros magistrados.
“A experiência que tive com o senhor não foi boa”, respondeu, fazendo referência às reportagens do início do ano.
“Naquela ocasião, tratava-se de uma reportagem”, argumentei. “Agora, o jornal quer publicar uma entrevista com destaque para suas alegações. Isso é outra coisa”, insisti. O juiz concordou.
Meia hora depois, subimos juntos no elevador do prédio da Justiça Federal, na praça da República. A entrada estava apinhada de jornalistas com microfones e câmeras de televisão.
Rocha Mattos vinha do TRF-3, onde obtivera alguns documentos. Ele me avisou que telefonaria imediatamente para o então diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda.
Havíamos iniciado a entrevista, quando a secretária transferiu a ligação com o diretor da Polícia Federal. Rocha Mattos autorizou-me a manter o gravador ligado.
Desliguei. Não sabia se o diretor estava no outro lado da linha, pois a conversa não foi feita em “viva voz”. Ele também não avisara Lacerda da minha presença.
Rocha Mattos fez acusações ao diretor-geral da PF. Anotei as mais graves. “O Dr. Paulo Lacerda está conduzindo a Polícia Federal de maneira incompetente, de maneira omissa, de maneira irresponsável”.
A entrevista foi publicada no dia 1º de novembro de 2003, um sábado.
Jantava com amigos na noite daquele sábado, quando o celular tocou. Era Rocha Mattos. Ele disse que gostara da publicação da entrevista.
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O Órgão Especial do TRF-3 julgou a ação penal por formação de quadrilha contra os réus da Anaconda nos dias 14, 15 e 16 de dezembro de 2004.
Dias antes do julgamento, enviei dois ofícios à desembargadora Therezinha Cazerta, relatora do caso, solicitando autorização para entrevistar Rocha Mattos, que aguardara o julgamento no presídio de Tremembé.
A advogada do juiz, Daniela Pellin, concordara com o pedido e se dispunha a me acompanhar. A procuradora regional da República Janice Ascari confirmou que não havia objeção do Ministério Público Federal. Não obtive resposta do gabinete da relatora.
Na manhã de 14 de dezembro de 2004, Rocha Mattos e outros réus desembarcaram de uma van da Polícia Federal com vidros escuros, na garagem do TRF-3.
Vi quando Rocha Mattos sinalizou para os jornalistas, dando a entender que desejava falar depois. Um dos encarregados da segurança do tribunal disse-me que o juiz mencionara o meu nome, ao revelar que gostaria de conceder uma entrevista.
Foi a última vez que vi o ex-juiz, que cumpre pena em regime fechado no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo.
Segundo informa o MPF, as penas impostas ao ex-juiz pela prática dos crimes de prevaricação, corrupção passiva, fraude processual, tráfico de influência, peculato e lavagem de dinheiro totalizam 34 anos e 22 dias de reclusão.
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Os principais fatos narrados acima estão relatados no livro “Juízes no Banco dos Réus” (Publifolha, 2005).
(*) Texto alterado em 9/12. Na versão anterior, constava que a primeira decisão de Rocha Mattos no “Caso Cobrasma” havia completado 30 anos na última sexta-feira (6).