O rugido do xerife do Judiciário e a voz rouca das comarcas
É surreal as associações de magistrados tentarem obter no Supremo Tribunal Federal a declaração de que a resolução sobre o uso de redes sociais, aprovada no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nesta terça-feira (17), é inconstitucional.
A resolução foi defendida pelo ministro Dias Toffoli, que preside os dois colegiados.
Como o STF é formado por onze ilhas, uma corte marcada por decisões monocráticas, é arriscado afastar a hipótese de uma liminar suspendendo a resolução.
Nos últimos anos, o CNJ passou por um processo de esvaziamento, inaugurado na gestão do ministro Ricardo Lewandowski, que negligenciou o julgamento de processos disciplinares e estimulou a abertura do CNJ ao lobby das entidades de classe da magistratura. [veja aqui]
Lewandowski conseguiu rachar o colegiado.
Quando foi corregedor nacional, o ministro João Otávio de Noronha não cumpria o regimento interno que obriga submeter ao colegiado os relatórios das inspeções em tribunais 15 dias depois do encerramento da fiscalização.
Apresentou-os no final da gestão, o que teria dado tempo para os tribunais ajustarem suas práticas, evitando punições.
O corregedor atual, ministro Humberto Martins, entende a correição como terapia. Como dizem os juízes, inaugurou a fase do “CNJ paz e amor”. [veja aqui]
Na sessão desta terça-feira, Martins se estendeu ao votar apoiando o presidente Toffoli, e depois sugeriu que os demais conselheiros abreviassem o tempo de seus votos.
O CNJ perdeu musculatura, faltou autoridade e firmeza para evitar e coibir, por exemplo, as práticas indecorosas do Tribunal de Justiça de Pernambuco, uma corte que não zela pela transparência, não cumpre a Lei de Acesso à Informação e distribui escandalosas benesses aos membros da corte. [veja aqui]
Historicamente, o CNJ enfrentou vários desafios. Nos primeiros anos de atividade, juízes mineiros resistiram a cumprir a Resolução nº 7, criada para combater o nepotismo no Judiciário. O juiz presidente de uma entidade que questionou essa resolução no STF mantinha a mulher e a sogra no tribunal.
Houve tempos em que o presidente do CNJ não era recebido pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Uma resolução desidratada
Talvez o clima de confronto ensaiado com a questão das redes sociais venha a arrefecer, uma vez que Toffoli suprimiu trechos polêmicos da versão original.
O que há, por enquanto, é uma nota distribuída aos membros da Associação dos Magistrados Brasileiros, pelo vice-presidente de Prerrogativas, Ney Alcântara, informando que a presidente da entidade, Renata Gil “já encaminhou ao jurídico determinação para ingressar imediatamente com uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade]”.
Renata Gil tem boas relações com Toffoli e iniciou sua sustentação elogiando o “primoroso trabalho” do ministro Aloysio Corrêa da Veiga, coordenador do grupo que elaborou a resolução sobre as redes sociais.
A presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Noemia Porto, informou ao jornal Valor que a entidade vai estudar a possibilidade de questionar a nova norma no STF.
O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Fernando Mendes, defendeu o “não regramento”, e que fossem acolhidas as sugestões da entidade, “tirando-lhe o caráter punitivo e reforçando a sua natureza de mera recomendação às condutas dos magistrados”. A Ajufe registrou que Toffoli acatou, “em parte”, suas sugestões.
Nos grandes enfrentamentos –e nas manifestações reverenciais à cúpula do Judiciário– as três entidades de juízes costumam atuar juntas. No dizer do juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, do Recife, “o temor reverencial é um velho conhecido da judicatura tropicalista”.
Em 2011, AMB, Ajufe e Anamatra tentaram intimidar a então corregedora Eliana Calmon, com uma queixa-crime, sob a alegação de quebra ilegal de sigilo bancário e fiscal de juízes e familiares. [veja aqui]
A ministra ficou abalada, mas o processo foi arquivado. Meses depois, os dirigentes das entidades foram tratados pelo então presidente do CNJ, ministro Joaquim Barbosa, como “líderes sindicais”.
“Os senhores não representam o CNJ. Os senhores não representam a nação. São representantes de classe”, disse o então presidente do Supremo. [veja aqui]
CNJ corteja as associações de classe
O juiz de direito Marcelo Semer, de São Paulo, identificou na resolução aprovada sobre redes sociais um aceno às associações de magistrados.
Toffoli preservou na resolução o Artigo 6º, estabelecendo que as recomendações e vedações “não se aplicam aos magistrados representantes legais e demais diretores das entidades e associações de classe, durante o exercício de seus mandatos”.
Como Semer observa, “reconhece-se o esforço de agradar as associações de classe, mas é no mínimo questionável permitir que os juízes discutam defesa do Estado Democrático de Direito apenas se estiverem representando os interesses de classe”.
“É o cúmulo do corporativismo”, diz o ex-presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia).
O CNJ parece ter minimizado a resistência da magistratura. Mesmo desidratada, a resolução pode distanciar ainda mais a cúpula e a base do Judiciário.
Quando Toffoli anunciou a formação do grupo de trabalho, os juízes comentavam nas listas de discussão que os ministros de tribunais superiores não dão bons exemplos para preservar a imagem do Judiciário: criticam decisões de outros juízes fora dos autos e demonstram extrema proximidade com as partes. [veja aqui]
Caiu a recomendação de evitar intervenções nas redes sociais que pudessem levantar dúvidas sobre a imparcialidade dos magistrados, especialmente com advogados, membros do Ministério Público e partes em processos.
Não cairia bem manter essa orientação, convenhamos, no momento em que vêm à tona os embargos auriculares grampeados de dois Alexandres (Alexandre de Moraes, ministro do STF, e o desembargador Alexandre Victor de Carvalho, do TJ de Minas Gerais).
Vale lembrar, ainda, os telefonemas entre o ministro do STF Gilmar Mendes e Aécio Neves (PSDB-MG), com várias ligações por meio de WhatsApp, durante as investigações do senador mineiro.
Seletividade na resolução
Em junho, como revela Reynaldo Turollo Jr., na Folha, a iniciativa do xerife foi vista como uma resposta aos diálogos de Telegram divulgados pelo site The Intercept Brasil.
“As conversas envolviam o ex-juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro, e procuradores da Lava Jato em Curitiba, sugerindo possível combinação entre juiz e acusação.”
Sobre o episódio, Marcelo Semer criticou a seletividade da resolução de Toffoli: “O CNJ não se dignou sequer a julgar o vazamento de dados sob sigilo praticado pelo então juiz Sergio Moro e hoje recomenda aos magistrados ‘evitar manifestações que evidenciem populismo judiciário ou anseio de corresponder à opinião pública”.
A proposta de resolução surgiu depois da frustrada tentativa do CNJ de punir magistrados que haviam se manifestado durante a campanha que elegeu o presidente Jair Bolsonaro.
Semanas antes, o Superior Tribunal de Justiça demonstrara que há instrumentos legais para coibir –sem censura prévia ou ameaça de mordaça– os excessos cometidos por magistrados nas redes sociais. O STJ recebeu queixa crime contra a desembargadora Marilia Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, acusada de injúria pelo ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).
A desembargadora nunca escondeu a admiração pelo juiz da Lava Jato, e sempre manteve estilo agressivo nas redes sociais. [veja aqui]
Ativismo eleitoral
Segundo Turollo Jr., “uma das preocupações da cúpula do Judiciário era criar normas antes de 2020, quando haverá eleições municipais e a expectativa é que o ambiente polarizado leve magistrados a se expor politicamente”.
Se o propósito é realmente evitar a exposição de magistrados, recomenda-se a leitura do livro “O Supremo e o Processo Eleitoral” (FGV Direito Rio e Jota), que trata das eleições de 2018 e do “ativismo eleitoral” de alguns ministros, advogados, procuradores e políticos que se relacionaram com o STF. [veja aqui]
“Não se viu nada de separação de Poderes. Viu-se o contrário. Interferência quase diária, apaixonada, fria ou sutil, necessária ou abusiva no processo eleitoral”.
Segundo os autores, nunca foi tão elevada “a ambição de alguns ministros” de se apropriar e privatizar suas decisões, capazes de influenciar, “intencionalmente ou não”, a escolha de dirigentes do Executivo e do Legislativo.
O mesmo livro revela um curioso episódio de uso de redes sociais por magistrados.
Indicado ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro enviou mensagem para o WhatsApp de Celso de Mello, que retribuiu a atenção. Longe de hackers, o diálogo só foi publicado em Tatuí (SP), no Jornal Integração, de um amigo do decano.