Juiz das garantias é o ‘Cavalo de Troia’ da lei anticrime, afirma magistrado

Sob o título “A Lei nº 13.964/19, o juiz das garantias, e o desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Constituição Federal”, o artigo a seguir é de autoria de Bruno Machado Miano, juiz de direito na comarca de Mogi das Cruzes (SP) e diretor jurídico da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados)

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Em clima natalino, no próprio dia 24 de dezembro, Sua Excelência, o Presidente da República, sancionou, com alguns vetos, a Lei nº 13.964, que visava, originalmente, ao pacote anticrime do ministro Sergio Moro.

Como estamos num país tropical, em que o respeito à ordem é confundido com autoritarismo, mesmo quando essa ordem é preconizada nos autos de uma investigação criminal ou de um processo penal, com todas as garantias inerentes, tais como contraditório, ampla defesa, acesso a outro grau de jurisdição, resolveram, por meio do símbolo maior da Lava-Jato –supremo paradoxo– fazer do projeto de lei um Cavalo de Troia.

Sim, num projeto que visava a elevar penas e tornar mais duras e efetivas medidas contra corrupção e crimes cometido com violência ou grave ameaça (o que não escapa de críticas, deixemos claro, porque a demagogia legislativa penal tem sido causa de nosso próprio descrédito), o legislador impingiu algo que, pelo nome, ninguém pode ser contra: o juiz das garantias.

Nosso Código de Processo Penal passa, agora, a ter o art. 3º-A, que estabelece:

“O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”

Apaixonado pelo alfabeto depois dos números de artigos, depois do 3º-A vem, claro, o art. 3º B, que preconiza:

“O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil;

II – receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no artigo 310 deste Código;

III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV- ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V – decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no §1º;

VI- prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII – decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII -prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no §2º deste artigo;

IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X – requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI – decidir sobre os requerimentos de: a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; c) busca e apreensão domiciliar; d) acesso a informações sigilosas; e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;

XII -julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII – determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;

XV- assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.”

 

Enfim, toda sorte de cautelares na investigação criminal será conduzida por essa nova figura processual-penal.

Trata-se, em grande verdade, de jogar cascas de banana por toda investigação, para anular a instrução (colheita de provas durante o processo, isto é, após o recebimento da denúncia).

O legislador entendeu que, ao deferir ou indeferir requerimentos na fase de investigação criminal (no inquérito policial, no mais das vezes) o juiz teria sua imparcialidade comprometida.

Por isso, um juiz decide sobre a legalidade das provas da investigação criminal, deferindo ou indeferindo, e outro juiz fará a instrução processual, conduzindo o processo depois de recebida a inicial acusatória (denúncia).

Outros países assim o fazem, e aqui não cabe avacalhar ou canonizar o instituto do juízo das garantias. A questão é outra: a forma pela qual o legislador resolveu criar essa figura.

De início, resta claro que, se a intenção foi separar o juiz que atua na investigação criminal, daquele que atua na instrução processual e julgamento, é preciso criar novos cargos: os de juiz das garantias, bem como de sua equipe de apoio (escreventes, chefe de seção, oficiais de Justiça que lhe sejam afetos etc.)

Em Comarcas menores, onde há um só juiz, a lei manda efetuar rodízio (parágrafo único do art. 3º-D, do CPP). Mas rodízio com quem, se na Comarca só há um juiz?

Evidente o contrassenso e a necessidade de novos cargos em tempos de crise.

Mesmo em comarcas maiores, há a especialização da jurisdição. Como ficaria essa implantação?

Na Comarca de Mogi das Cruzes (SP), onde judica o subscritor destas linhas, há apenas três varas criminais. Três Juízos Criminais. Um juiz passaria a ser o juiz das garantia do outro? Alguém crê que isso dará certo?

E no Supremo Tribunal Federal? Serão sempre dois relatores? Sua Excelência, o ministro  Relator da Lava-Jato, poderia, por exemplo, estar manietado de provas que auxiliem seu convencimento, porque indeferidas por outro ministro, dito das garantias.

Evidente, pois, que novos cargos deverão ser criados. Mas a Lei 13.964 não aponta a fonte de custeio para esses novos cargos, essa nova estrutura. Isso desatende a Lei Complementar nº 101, em seu artigo 17, § 1º.

Não é lícito aumentar a ação dos Poderes sem que haja:

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes; e

II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias (art. 16, da LC 101).

Logo, criaram cargos na estrutura judiciária sem atender ao especificado em Lei Complementar.

Não há, com efeito, qualquer alusão à estimativa do impacto orçamentário-financeiro na criação dos juízos das garantia, e tampouco há declaração do ordenador da despesa (os Presidentes dos Tribunais) sobre a adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual (LOA) e menos ainda com a compatibilidade dessas despesas com o plano plurianual e com a LDO (lei de diretrizes orçamentárias).

Criaram uma estrutura sem combinar com o Poder que deve implementá-la, o que, em última análise, pode gerar uma crise orçamentária sem precedentes, com paralisação de outros serviços.

Mas há uma razão para que tenha o legislador desobedecido à Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101): ele não poderia criar cargos na estrutura de outro Poder.

A iniciativa para a criação de cargos em cada Poder, conforme nossa Constituição Federal, compete justamente ao Chefe desse Poder, de forma que o legislador ordinário não cause empecilhos ou embaraços ao funcionamento de Poder alheio.

É uma regra clara, que se infere da independência entre os Poderes (art. 2º, CF). Não bastasse essa clarividência, o constituinte originário foi cauteloso com essa questão, constando expressamente do art. 96, II, da Magna Carta:

“ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:

a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;

b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;

c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores; d) a alteração da organização e da divisão judiciárias. (Negritei).

Claro que o juiz das garantias terá de ser provido por cargo. Não é uma simples função avulsa, que transforma um juiz em corregedor do outro, criando uma autofagia no âmago do Poder Judiciário, em desrespeito ao postulado do juiz natural (quanto ao órgão correicional judiciário), previsto no art. 5º, XXXVII, da Constituição Federal.

E resta claro, também, que para o cumprimento de seus misteres, para a execução de suas ordens, haverá de ser organizado todo um serviço de apoio, incluindo novos cargos e mais despesas.

Por isso o legislador descumpriu a Lei de Responsabilidade Fiscal. Porque não poderia cumpri-la, sem o desate indesejado: o de que não possui competência legislativa para a criação dessa nova figura processual.

Urge, pois, que os tribunais pátrios, em defesa de sua autonomia financeira e orçamentária, busquem junto ao Supremo Tribunal Federal a invalidação, nesse tocante, da Lei nº 13.964, sob pena de, não o fazendo, permitirem que outro Poder –o Legislativo– aproprie-se de competências exclusivas do Judiciário, previstas expressamente na Constituição Federal, causando desarmonia não apenas entre os Poderes, mas, primordialmente, criando o caos na organização judiciária de cada tribunal.