Analistas veem no juiz das garantias a segurança para a máxima imparcialidade
Sob o título “Ainda o juiz das garantias: preservar para melhor punir“, o artigo a seguir é de autoria de Alamiro Velludo Salvador Netto e Guilherme Guimarães Feliciano (*)
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Entrou em vigor nesta quinta-feira (23) –parcialmente– a Lei nº 13.964/2019, do dito “pacote anticrime”, que promoveu diversas alterações no sistema criminal brasileiro, modificando o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e outros tantos diplomas legais em vigor.
De todos os seus pontos, talvez o mais polêmico seja a instituição do chamado “juiz das garantias”, que passa a ter previsão textual no art. 3º-B do CPP e demoraria, de acordo com a decisão recentemente proferida pelo ministro Dias Toffoli, seis meses adicionais para vigorar em todo o país.
Tal decisão foi tomada nos autos das ADIs 6.298, 6.299 e 6.300 –ajuizadas, respectivamente, pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), pelo Podemos/Cidadania e pelo Diretório Nacional do PSL.
Logo depois, no último dia 22, o ministro Luiz Fux, substituindo Toffoli no plantão do STF, deferiu nova medida liminar cautelar nos autos das mesmas ações, suspendendo (novamente) a eficácia do art. 3º-B do CPP, na redação da Lei n. 13.964/2019, agora por tempo indeterminado. Na prática, o ministro Fux “revogou” a decisão anterior, do ministro Dias Toffoli, substituindo-a.
Como se percebe –inclusive pela colidência entre as decisões de Toffoli e Fux–, a polêmica não arrefece.
Do natal de 2019 até este momento, quase não se fala de outra coisa, especialmente entre os setoristas do Poder Judiciário. A sua criação recebeu efusivos aplausos de parte da comunidade acadêmica e judiciária, por um lado, e acerbas críticas de algumas entidades de classe de magistrados e de membros do Ministério Público, por outro.
Seguem em aberto diversos pontos críticos: por exemplo, a própria possibilidade de o juiz das garantais receber (ou não) a denúncia ou queixa, traduzindo certa confusão de papeis que se poderia evitar, se se deixasse ao juiz de julgamento –que ao fim do processo poderá inclusive reconhecer a inépcia da peça proemial– a tarefa do recebimento.
E seguem convictos, ademais, aqueles que reputam a figura inconstitucional (assim, e.g., o teor da decisão do min. Fux na ADI 6.299-DF e as próprias falas da presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Simone Tebet), apesar da sinalização do presidente Dias Toffoli em sentido contrário (eis que, na própria decisão de 15 de janeiro, reputou constitucionais os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C. 3º-D, caput. 3º-E e 3º-F do CPP, como introduzidos pelo art. 3º da Lei n. 13.964/2019). A disputa de sentido e validade, no Plenário do STF, promete bons embates.
Será afinal, materialmente inconstitucional? Vejamos.
A rigor, a criação de um juiz das garantias é demanda existente há muitos anos no Brasil (tanto que igualmente previsto no PLS 156/2009, o projeto do novo CPP, em trâmite no Congresso Nacional).
Fia-se no propósito de assegurar a máxima imparcialidade judicial possível. E o conceito de imparcialidade não se limita à ideia de um juiz que não tenha propensões subjetivas para favorecer ou prejudicar o réu. Vai além disto: diz com o que as ações do juiz comunicam, institucionalmente, aos cidadãos. Daí a ideia de imparcialidade “objetiva” (a “terzietá” dos italianos).
Em termos ideais, o juiz penal não deve alimentar desejos de prejudicar ou favorecer certo réu, tanto quanto não deve aparentar agir, nos procedimentos penais, como acusador ou como defensor (agora, a despeito de seus quereres). Por isso mesmo, na medida em que todos os julgadores são humanos, a história do processo penal é a trajetória do desenvolvimento de modelos que progressivamente neutralizam a falibilidade do homem-juiz e se aproximam da justiça viável.
Para que o leitor bem entenda, o procedimento penal divide-se em duas fases. A primeira, de cunho investigatório, é tradicionalmente presidida pela polícia civil ou federal (sob a supervisão do Ministério Público) e se destina à coleta de elementos de informação que possam demonstrar a ocorrência de uma infração penal e identificar o seu autor.
Nessa etapa, faz-se necessária a presença de um juiz para assegurar as garantias do investigado, eis que apenas esse magistrado poderá autorizar, de modo fundamentado, que os investigadores adotem medidas como as prisões cautelares, as buscas e apreensões, as interceptações telefônicas ou de dados etc. Sua função institucional exaure-se nesta missão: assegurar as liberdades públicas e os direitos constitucionais dos investigados (que podem ser culpados, mas também podem ser inocentes).
Esse juiz não “preside” a investigação, portanto; apenas assegura a sua lisura.
Em seguida, uma vez alcançada a mínima demonstração da ocorrência do crime e de seu autor, será promovida a ação penal, agora sim presidida pelo juiz criminal, o qual se fará convencer ao longo de todo o processo acerca da argumentação das partes (i.e., acusação e defesa). Ao final, competirá a esse juiz sentenciar o caso, inocentando ou condenando o réu.
Assim entendido, a pergunta fundamental é esta: o magistrado que atuou na fase de investigação pode ser a mesma pessoa que atuará na fase de instrução e julgamento?
Parafraseando o insuperável Magalhães Gomes Filho –que, a propósito, ensinou as primeiras linhas do processo penal a estes dois articulistas–, um juiz ativo na fase de investigação dificilmente será, logo adiante, um magistrado imparcial no momento da decisão: afinal, “a tarefa de recolher elementos para a ação penal é, por natureza, parcial”.
Trata-se de um viés cognitivo inerente ao ser humano e denominado pela psicologia como “tendência de confirmação”. Não por outra razão, a maior parte dos países europeus aboliu, ao longo dos anos, a polêmica figura do “juiz de instrução”. E, nos lindes de um julgamento criminal, imaginar um juiz que não seja subjetiva e objetivamente imparcial é o mesmo que lançar aos porcos a mais proeminente joia do liberalismo jurídico-político. Somente o balanceamento razoável entre os interesses da acusação e da defesa permite alcançar que, na sentença, “não falem senão as leis e a verdade” (Cesare Beccaria).
Para mais, um breve lançar de olhos às experiências estrangeiras aponta que praticamente todas as democracias ocidentais impedem essa “dupla participação”. Assim ocorre em países da Europa como Portugal, Espanha e Itália –sim, o juiz das garantias também existe na pátria da célebre Operação Mãos Limpas, que tanto inspirou a Lava Jato tupiniquim –, como em nações sul-americanas próximas, a exemplo de Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia e Peru.
Daí porque, ao largo das rusgas político-ideológicas, a adoção do juiz das garantias não diz com uma disputa malsã entre inocentes e culpados, advogados e promotores, juízes e acadêmicos. Ou, na dicção do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli -–um dos entusiastas da ideia-–, a sua adoção não significa, em absoluto, a opção por “um juiz a favor do investigado”.
Cuida-se, ao revés, de uma valiosa vereda de aprimoramento processual, consagrando um modelo de processo penal que já funciona, com bons êxitos, em inúmeros países que partilham da nossa tradição jurídico-dogmática. E, convenhamos, uma inflexão desse porte não se faz sem bons esforços de logística, algum investimento e muita boa vontade. Mas, pelo que representa, não deve ser travada por óbices orçamentários e burocráticas que decerto se poderão superar (notadamente agora, com o prazo adicional conferido pelo Presidente do STF).
Aliás, a própria lei já previa que, em comarcas nas quais funcionasse um único juiz –e não são poucas (dados do CNJ indicavam ser praticamente 40% das comarcas brasileiras)–, “os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados” (art. 3º-D, par. único, do CPP).
Restaria prover a logística. Após as medidas liminares deferidas nas ADIs supra, suspendendo a eficácia desse preceito –ao exato argumento de que ele “viola o poder de auto-organização dos tribunais e usurpa sua iniciativa para dispor sobre organização judiciária”–, os tribunais federais e estaduais passam a ter maior liberdade para resolver qual a melhor maneira de atender à nova demanda (se por rodízios ou por outro mecanismo).
Com boa vontade institucional, as cartas logo virão à mesa.
Discutir a inconstitucionalidade formal da novidade exigiria, de nossa parte, outro texto. Impende registrar, porém, o que para nós é um ponto de partida inexorável: por tudo quanto dito até aqui, as normas legais que criam a figura do juiz das garantias são típicas normas de direito processual penal–e, nesse sentido, não são de necessária iniciativa do Poder Judiciário–, inclusive porque dão maior e melhor concreção ao princípio do devido processo penal formal, à garantia da imparcialidade judicial (objetiva e subjetiva) e à própria natureza acusatória do processo penal.
Realizam, na verdade, a finalidade primordial das normas-regras, pelo escólio de Robert Alexy: densificar os conteúdos das normas-princípios –especialmente as constitucionais–, que são mandados de otimização para os centros institucionais legiferantes (como o Congresso Nacional).
Acaso também haverá, ao longo da Lei nº 13.964/2019, normas de procedimento e/ou normas de organização judiciária que possam tolher a autonomia dos estados (CRFB, arts. 96, 125, §1º etc.); mas, se houver, deverão ser atacadas isoladamente, sem tisnar o instituto “per se” (que, repise-se, nada tem de inconstitucional).
De tudo isso, convirá afinal concluir o instituto do juiz das garantias diz, sim, com a afirmação dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Ou –o que é o mesmo– com a superação do “l’État c’est moi” pelo “l’État c’est la loi”.
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ALAMIRO V. S. NETTO, advogado, é Professor Titular do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
GUILHERME G. FELICIANO, juiz do Trabalho, é Doutor em Direito Penal e Professor Associado de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP. Ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-2019).