Comete crime quem descumpre determinação para impedir contágio?

Sob o título “A infração de medida sanitária preventiva e o coronavírus”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado, procurador regional da República aposentado.

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Aquela pessoa que sabe estar contaminada pelo coronavírus e descumpre a determinação do Poder Público, mantendo contato com outras pessoas, comete crime?

No caso, o sujeito desrespeita determinação do poder público destinada a impedir a difusão da doença, extremamente contagiosa, a outras pessoas.

Essa a base do nosso texto.

Determina o artigo 268 do Código Penal:

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa.

O elemento subjetivo é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Não se exige o dolo especifico.

O que é determinação do Poder Público? É ordem ou resolução dos órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado. Trata-se de norma penal em branco, dependente de que venha a complementá-la para que se conheça o seu real alcance.

É certo que essa determinação do Poder Público deve voltar-se à introdução(ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) de doença contagiosa.

O bem jurídico tutelado é a saúde pública.

Tal é o caso do coronavírus.

Os coronavírus (CoV) são uma grande família viral, conhecidos desde meados dos anos 1960, que causam infecções respiratórias em seres humanos e em animais. Geralmente, infecções por coronavírus causam doenças respiratórias leves a moderada, semelhantes a um resfriado comum. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida, sendo as crianças pequenas mais propensas a se infectarem. Os coronavírus comuns que infectam humanos são alpha coronavírus 229E e NL63 e beta coronavírus OC43, HKU1.

Alguns coronavírus podem causar síndromes respiratórias graves, como a síndrome respiratória aguda grave que ficou conhecida pela sigla SARS da síndrome em inglês “Severe Acute Respiratory Syndrome”. SARS é causada pelo coronavírus associado à SARS (SARS-CoV), sendo os primeiros relatos na China em 2002. O SARS-CoV se disseminou rapidamente para mais de doze países na América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia, infectando mais de 8.000 pessoas e causando entorno de 800 mortes, antes da epidemia global de SARS ser controlada em 2003. Desde 2004, nenhum caso de SARS tem sido relatado mundialmente.

Em 2012, foi isolado outro novo coronavírus, distinto daquele que causou a SARS no começo da década passada.

Esse novo coronavírus era desconhecido como agente de doença humana até sua identificação, inicialmente na Arábia Saudita e, posteriormente, em outros países do Oriente Médio, na Europa e na África. Todos os casos identificados fora da Península Arábica tinham histórico de viagem ou contato recente com viajantes procedentes de países do Oriente Médio – Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes e Jordânia.

Pela localização dos casos, a doença passou a ser designada como síndrome respiratória do Oriente Médio, cuja sigla é MERS, do inglês “Middle East Respiratory Syndrome” e o novo vírus nomeado coronavírus associado à MERS (MERS-CoV).

Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida por gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.

Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.

Está aí esse perigoso contagioso que exige para os casos concretos aplicação da norma penal específica.

É crime comum, formal (que não exige para a sua consumação resultado naturalístico). Havendo dano ocorre o exaurimento. É crime instantâneo, de perigo comum, unissubjetivo.

É crime que admite a tentativa.

O parágrafo único daquele artigo 268 apresenta causas de aumento.

É crime que admite a transação, tal como previsto na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.

Cabe ainda falar para o crime na suspensão condicional do processo.

A ação penal é pública incondicionada.

O núcleo do crime é infringir, que possui a significação de violar, transgredir, desrespeitar, desobedecer. O que se pune é a conduta de infringir determinação do Poder Público destinada a introdução ou propagação da doença contagiosa.

Como dito trata-se de lei penal em branco que se completa com a existência de outra lei ou decreto. A portaria não é meio legislativo, pois é norma secundária que tem alcance nos limites da Administração, não tendo o condão de generalidade, próprio das normas jurídicas. As normas emitidas por portaria pelo ministério da saúde deveriam ser emitidas por Decreto do presidente da República no exercício de seu poder regulamentar.

Portaria não cria normas gerais.

Todavia, a portaria não traz novidade, própria da edição de uma regra jurídica, pois é regra secundária que está limitada por normas primárias.

A portaria é norma secundária. Ela não é editada pelo Parlamento, criando-se nos gabinetes da Administração.

Necessário estudar a natureza jurídica da portaria diante da lei.

Como bem ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, pág. 337):

“Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”.

Na lição de Paulino Jacques (Curso de Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, pág. 81), as instruções, normas típicas secundárias, dispõem, em geral, sobre a execução dos serviços públicos ou de normas legais ou regulamentares. Daí tem-se a lição de Carré de Malberg de que as instruções só produzem efeito “no interior do serviço, porque se originam do serviço e se editam em virtude das relações que o serviço engendra entre chefes e subalternos” (Teoria general del Estado, tradução de J. L. Degrete, México, 1948, pág. 605, n. 224), não obrigando assim os particulares.

Em verdade, com relação a portarias, há regras dadas às autoridades públicas, prescrevendo-lhes o modo por que devem organizar e pôr em andamento certos serviços.

Portaria ministerial não integra o processo legislativo disciplinado pela Constituição. Trata-se de ato normativo interno destinado a ordenar os serviços executados por servidores de determinado estabelecimento ou repartição. Não atribui direitos, nem impõe obrigações e penalidades a terceiros.

Desde o regime militar, todavia, o extinto Ministério do Trabalho –-reduzido à condição de secretaria do Ministério da Economia pelo presidente Jair Bolsonaro-– baixa portarias para aprovar normas regulamentadoras sobre higiene e segurança do trabalho, com regras impositivas que beiram o absurdo ou de impossível execução.

A portaria não faz as vezes de decreto presidencial no exercício do poder regulamentar.

Há no caso a Lei 13.979, na matéria, que deve ser objeto de regulamentação através de decreto e não de portaria, inclusive no que concerne às medidas quanto ao exercício do poder de polícia, como é o caso da internação e da quarentena devidas em nome da saúde pública, do bem comum. Essas medidas devem ser tomadas no cumprimento e no exercício do poder de polícia.

No caso há uma portaria nº 359 que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional em decorrência da Infecção Humana pelo coronavírus (COVID-19).

Mas ainda é mister que se diga que o dispositivo administrativo que contém mera regra genérica de higiene não preenche a norma penal em branco do crime previsto no artigo 268 quando o agente viola norma sanitária específica destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa determinada e não qualquer dispositivo de regulamento sanitário.

Discute-se a questão da revogação da norma complementar.

Há divergência doutrinária a respeito, embora pareça a muitos, como Guilherme de Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 961) que mais correta é a posição daqueles que sustentam haver possibilidade a aplicação do princípio da retroatividade benéfica, dependendo de caso concreto. Dizem que, afinal, saber qual foi exatamente a causa da revogação da norma destinada a impedir a introdução ou propagação da doença contagiosa é fundamental para a inteligência do tipo penal.

Caso o Poder Público revogue a medida por considerar, por exemplo, inócua para o efetivo resultado pretendido não haveria razão para punir o agente. Entretanto, se a revogação se der porque já foi contida a doença, será preciso aplicar o artigo 3º do Código Penal, considerando ultrativo o complemento, mantendo-se a punição do agente.

Temos para o caso, de toda sorte: a) retroage em favor do agente excluindo a ilicitude, como revelou Heleno Claudio Fragoso (Lições de direito penal, Parte Especial, 1965, v. III, pág. 833); b) não retroage, como ditou Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 1969, volume IX, pág. 104); c) em princípio, não retroage, mas não se pode deixar de fazer concessões, como explicitou Magalhães Noronha(Direito penal, 1995, volume IV, pág. 11).

Para o caso discutido no parágrafo anterior veja-se o exemplo trazido pela imprensa, no site do Bahia. ba, em 14 de março, onde se disse:

“Após pressão dentro do governo, o Ministério da Saúde recuou na decisão de impedir a saída de novos cruzeiros do país enquanto durar a pandemia do novo coronavírus.

De acordo com o jornal ‘Folha de S.Paulo’, a pasta também retrocedeu na recomendação para que todo viajante internacional fique em isolamento em casa por até sete dias a partir da data de desembarque.

A medida anunciada na última sexta-feira (13) tinha como objetivo evitar a transmissão do covid-19.

As mudanças feitas após a pressão do governo foram anunciadas neste sábado (14) em uma atualização do boletim epidemiológico sobre o coronavírus.”