Coronavírus: Aras poupa Bolsonaro e critica subprocuradores-gerais

O arquivamento de um memorando em que cinco subprocuradores-gerais pediam a Augusto Aras recomendar a Jair Bolsonaro evitar manifestações contra a política do Ministério da Saúde no combate ao coronavírus trouxe à tona as divergências internas na Procuradoria-Geral da República.

No documento, os subprocuradores tratam do pronunciamento de Bolsonaro, em cadeia nacional, no último dia 24, quando o presidente criticou o fechamento de escolas e do comércio, “transmitindo à população brasileira sinais de desautorização das medidas sanitárias em curso, adotadas e estimuladas pelo próprio Poder Público Federal”.

“O serviço de cadeia nacional obrigatória de rádio e televisão deve proporcionar correto esclarecimento da população em geral acerca de situações de emergência e de gravidade, trazendo orientações e informações precisas, bem como segurança social, sob pena de configurar, até mesmo, desvio de finalidade”, alertam os subprocuradores-gerais.

Em nota pública, Aras reclamou que o memorando foi recebido no gabinete “somente após ampla divulgação do seu conteúdo na imprensa nacional”.

“Neste momento em que o país atravessa estado de calamidade pública, exige-se do Ministério Público brasileiro mantenha-se afastado de disputas partidárias internas e externas, sem entraves à atuação dos órgãos competentes no cumprimento de seus deveres, a fim de que todos vençamos o coronavírus”, afirmou Aras.

O PGR considerou a proposta “juridicamente inviável”. Aras afirmou que não há “indícios de eventual prática de ilícito de natureza criminal por parte do presidente da República”.

Aras disse que o ordenamento jurídico brasileiro não contempla a possibilidade de controle apriorístico do conteúdo de pronunciamento de autoridades políticas, nem de particulares. Citou decisão do STF reiterando que “a liberdade de expressão, em seu aspecto positivo, permite posterior responsabilidade civil e criminal pelo conteúdo difundido, além da previsão do direito de resposta”.

Finalmente, considerou que os pronunciamentos do presidente “ostentam inegável dimensão política – e não administrativa”, e que é reservado ao Congresso Nacional –e não ao Ministério Público– o juízo definitivo a respeito das funções políticas exercidas por Bolsonaro.

A manifestação dos subprocuradores foi enviada previamente, pelo sistema interno da PGR, ao chefe de gabinete de Aras.

A seguir, a íntegra da nota distribuída pela PGR e a decisão de Aras.

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NOTA PÚBLICA

Sobre a circulação de notícias e documento que dizem respeito à atuação do PGR junto aos demais Poderes da República quanto ao enfrentamento da epidemia de Covid-19, a Procuradoria-Geral da República esclarece:

1- Memorando subscrito por cinco subprocuradores-gerais da República, coordenadores das 2a, 4a, 6a e 7a CCRs e PFDC do Ministério Público Federal, foi recebido ontem no Gabinete do PGR, somente após ampla divulgação do seu conteúdo na imprensa nacional, tornando-se fato público e notório e, por isso, inócuo o seu objetivo, uma vez que alcançada a finalidade de manifestar preocupação pessoal com políticas de governo. Assim, foi arquivado nesta tarde, sobretudo pelo não cabimento da sugerida recomendação, que pressupõe a existência de instrumentos legais para a efetivação do seu teor, na hipótese de negativa por parte da autoridade representada.

2 – O Procurador-Geral da República contribui na atuação das instituições e dos poderes da República, na sensibilidade dos Governantes e no esforço comum de todos os cidadãos, em prol do diálogo, da cooperação e da unidade nacional, necessários ao enfrentamento de um dos maiores desafios já vividos pelo Brasil, o que requer uma atuação do MP no sentido do arrefecimento de polarizações e foco em soluções.

3- Os Chefes dos Poderes Executivos em todas as esferas (federal, estadual e municipal) detêm liberdade de expressão para se posicionar sobre assuntos considerados relevantes para a sociedade, e não subordinam suas opiniões a organismos externos, principalmente considerada a dinâmica do avanço da epidemia de doença nova, que obriga a revisão de protocolos médicos com frequência, bem como a revisão de orientações gerais à população.

4- No quadro de grande esforço nacional para combater o vírus, verifica-se, neste momento, que as instituições estão funcionando e atuando, em conformidade e nos limites de suas competências e atribuições, destacando-se o trabalho de coordenação geral do Ministério da Saúde, sendo inoportuno fazer uso do quadro de epidemia para polarizações que em nada contribuem para o enfrentamento da Covid-19.

5- O Procurador-geral da República, Augusto Aras, tem atuado no sentido de que o Ministério Público brasileiro seja um agente catalizador do diálogo e da cooperação dos diversos órgãos dos entes federados envolvidos no combate tanto à epidemia, para preservar a saúde e a vida, quanto às consequências da doença para a economia e para o desenvolvimento do país.

6- Nessa linha, têm sido adotadas pela Procuradoria-Geral da República inúmeras providências tanto na área administrativa – com a proteção de membros, servidores, estagiários e colaboradores de todas as unidades do Ministério Público da União (MPU) sem descuidar de assegurar a continuidade da prestação de serviços à população – quanto na área finalística, com a instituição do Gabinete Integrado de Acompanhamento à Epidemia Covid-19, que tem feito dezenas de reuniões e articulação direta com o Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais da saúde para agilizar respostas necessárias à atuação do MP em todo o país.

7 – Ciente da necessidade de aumentar os recursos financeiros para garantir o atendimento médico à população, o PGR tem atuado no esforço de destinar valores decorrentes de condenações penais, multas extrapenais, acordos e repactuações de acordos de colaboração premiada para medidas que se fizerem necessárias no combate à epidemia, sem prejuízo das penas privativas de liberdade e restritivas de direito e da continuidade das investigações em curso.

8 – Finalmente, neste momento em que o País atravessa estado de calamidade pública, exige-se do Ministério Público brasileiro mantenha-se afastado de disputas partidárias internas e externas, sem entraves à atuação dos órgãos competentes no cumprimento de seus deveres, a fim de que todos vençamos o Coronavírus.

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA

Despacho no 1622/2020 Referência: PGR-00119486/2020

DECISÃO DE ARQUIVAMENTO

 

Cuida-se de memorando subscrito pelos excelentíssimos senhores Subprocuradores-Gerais da República coordenadores da 2a, 4a, 6a e 7a Câmaras de

Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (CCR), bem como da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), em que apresentam “proposta de RECOMENDAÇÃO ao Governo Federal, na pessoa do sr. Presidente da República JAIR BOLSONARO, no sentido de que a implementação e a execução de ações de saúde, como também, a veiculação de pronunciamentos e informações correlatas, por toda e qualquer autoridade do Poder Executivo Federal, seja realizada de forma coerente e em sintonia com as orientações emanadas das autoridades sanitárias nacionais e da Organização Mundial de Saúde, bem como em consonância com o Plano Nacional de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus COVID-19, do Ministério da Saúde, devidamente compatíveis com o estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII, declarado pela OMS”.

 

As razões da proposta foram apresentadas sob forma de considerandos:

 

  1. CONSIDERANDO a situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – ESPII, consubstanciada na epidemia do novo coronavírus, conforme declarado pela Organização Mundial de Saúde – OMS, em 30.1.2020, já tendo sido caracterizada como situação de pandemia;

 

  1. CONSIDERANDO a progressão dos casos de contaminação, já em escala comunitária, sendo contabilizados, até a data de hoje, em nosso País, 2.201 casos, num universo acelerado de 332.935 casos registrados em 187 países, conforme dados coletados pela OMS;

 

  1. CONSIDERANDO todos os elementos pertinentemente destacados nos fundamentos ensejadores da Portaria PGR/MPU n° 59, de 16.3.2020, que instituiu o Gabinete Integrado de Acompanhamento à Epidemia do Coronavírus-19 (“a declaração do Ministério da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, por meio da Portaria MS no 188, nos termos do Decreto no 7.616, de 17 de novembro de 2011, do Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, com a mobilização do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COEnCoV), como mecanismo nacional de gestão coordenada de respostas à emergência na esfera nacional, sob a coordenação da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde – SVS/MS; a edição pelo Ministério da Saúde do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus, com a definição das estratégias de atuação nacional; a Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019; a Nota Técnica Conjunta no 1/2020 – CES/CNMP/1a CCR, de 26 de fevereiro de 2020, para potencializar a atuação conjunta, interinstitucional e voltada à atuação preventiva, extrajudicial e resolutiva, dos ramos do Ministério Público Brasileiro no esforço nacional de contenção da epidemia; a situação notoriamente emergencial, que exige a ação coordenada do Ministério Público, para prevenir dispersão e eventuais contradições, a conferir sobressalência ao princípio constitucional da unidade”);

 

  1. CONSIDERANDO, também, que as orientações editadas por autoridades sanitárias em nível internacional, inclusive pela Organização Mundial de Saúde, partindo da reconhecida premissa de que a “disseminação do coronavírus está acelerando”, convergem no sentido da adoção de compromissos políticos globais efetivos em medidas defensivas e de ataque à pandemia (cf. https://news.un.org/pt/story/2020/03/1708272), que vem sendo, aliás, tida como a maior crise sanitária do mundo globalizado;

 

  1. CONSIDERANDO que, ainda de acordo com a Organização Mundial de Saúde, entre as medidas de contenção a serem implementadas, o distanciamento de pessoas infectadas ou que podem atuar como vetores, assim como o isolamento social têm sido apontados como providência mais eficaz, até agora, para diminuir a propagação do vírus;

 

  1. CONSIDERANDO que a existência de uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em consonância com as regras do Regulamento Sanitário Internacional, é da atribuição do Ministro de Estado da Saúde (artigo 4o do Decreto 7616, de 2011), competindo a essa autoridade coordenar o Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional – GEI-ESPII, nos termos do Decreto 10.211, de 2020;

 

  1. CONSIDERANDO que, nos termos da Portaria n° 188, de 3 de fevereiro de 2020, o Ministro de Estado da Saúde declarou a situação de ESPIN em relação à infecção humana pelo novo coronavírus;

 

  1. CONSIDERANDO que o Ministério da Saúde, em observância ao previsto na Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, definiu que medidas de quarentena, com objetivo de garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado;

 

  1. CONSIDERANDO que tais medidas podem ser determinadas mediante ato administrativo formal e devidamente motivado do Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou do próprio Ministro de Estado da Saúde e amplamente divulgada pelos meios de comunicação (Portaria 356/2020, art. 4o, § 1o);

 

  1. CONSIDERANDO que essas mesmas medidas de contenção têm sido veementemente recomendadas pelas autoridades sanitárias brasileiras, em caráter excepcional e preventivo, o que tem ocasionado o não funcionamento presencial de inúmeros setores da organização pública e privada, inclusive no âmbito das unidades do Ministério Público, Legislativo e do Judiciário, de forma a reduzir a circulação de pessoas;

 

  1. CONSIDERANDO que, na direção contrária das orientações de caráter sanitário, de âmbito interno e internacional, o sr. Presidente da República Federativa do Brasil, em pronunciamento veiculado na noite do dia 24.3.2020, em cadeia nacional, refutou a necessidade de isolamento social em face da pandemia, criticando o fechamento de escolas e do comércio, minimizando as consequências da enfermidade e, com isso, transmitindo à população brasileira sinais de desautorização das medidas sanitárias em curso, adotadas e estimuladas pelo próprio Poder Público Federal, com forte potencial de desarticular os esforços que vêm sendo empreendidos no sentido de conter a curva de contaminação comunitária;

 

  1. CONSIDERANDO que o serviço de cadeia nacional obrigatória de rádio e televisão deve proporcionar correto esclarecimento da população em geral acerca de situações de emergência e de gravidade, trazendo orientações e informações precisas, bem como segurança social, sob pena de configurar, até mesmo, desvio de finalidade;

 

  1. CONSIDERANDO ser fundamental que a definição de planos de ação e a implementação dos serviços de saúde, principalmente em momentos de grave crise, levem em conta diretrizes uniformes e coerentes, e que assegurem o máximo de informações elucidativas e corretas à população, destinatária final desses serviços;

 

  1. CONSIDERANDO ser função institucional do Ministério Público zelar pela promoção dos interesses sociais e individuais indisponíveis, entre os quais se destacam, no caso, os interesses dos idosos e de outros grupos vulneráveis, e pela regular prestação dos serviços de relevância pública (CF, art. 127; Lei Complementar n. 75/1993, art. 5o, inciso III, e IV);

 

  1. CONSIDERANDO caber ao Ministério Público a formalização de recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública (LC n. 75, art. 6°, XX), e prevenindo, inclusive, promoção de eventuais medidas de responsabilização por crimes comuns contra a saúde pública e de responsabilidade; 16. CONSIDERANDO, enfim, que, pela estrutura organizacional do Ministério Público Federal, compete ao Procurador-Geral da República dirigir recomendações ao Presidente da República, nos termos do art. 8o, § 4°, da LC n. 75/1993.

 

O caso é de arquivamento.

 

Reputo juridicamente inviável a proposta encaminhada, em razão de obstáculos de natureza formal e material.

 

É sabido que o encaminhamento de recomendações a agentes públicos pressupõe a existência de instrumentos legais para a efetivação do seu teor, na hipótese de negativa por parte da autoridade representada.

 

Sucede que o ordenamento jurídico brasileiro não contempla a possibilidade de controle apriorístico do conteúdo de pronunciamento de autoridades políticas, nem de

particulares. Nesse sentido, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal reiterou o seu entendimento de que “a liberdade de expressão, em seu aspecto positivo, permite posterior responsabilidade civil e criminal pelo conteúdo difundido, além da previsão do direito de resposta. No entanto, não há permissivo constitucional para restringir a liberdade de expressão no seu sentido negativo, ou seja, para limitar preventivamente o conteúdo do debate público em razão de uma conjectura sobre o efeito que certos conteúdos possam vir a ter junto ao público” (STF, 1a T, Rcl 38201-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 6.3.2020; grifos aditados).

 

Tampouco há indícios de eventual prática de ilícito de natureza criminal por parte do Presidente da República, situação que, se acaso existisse, poderia deflagrar a competência originária estabelecida no art. 102, I, “b”, da CR.

 

Demais disso, sob o aspecto material, a atuação do Ministério Público brasileiro encontra limites na Constituição da República e nas leis, não podendo se imiscuir em atos de natureza política, exceto quando produzidos relevantes efeitos jurídicos em desacordo com a Constituição, qualificados, de regra, por efeitos danosos.

 

Os pronunciamentos do Presidente da República, como chefe de Estado e de Governo, ostentam inegável dimensão política – e não administrativa –, sendo certo que o controle político, em um Estado de Direito, pressupõe o equilíbrio entre os Poderes estruturais da República e o Ministério Público. Observado o sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição, o juízo definitivo a respeito das funções políticas exercidas pelo Presidente da República é reservado ao Congresso Nacional, e não ao Ministério Público.

 

Em um ambiente crítico marcado pelo reconhecimento da pandemia do COVID- 19 e pela existência de incertezas científicas que decorrem naturalmente da excepcionalidade vivenciada, não cabe ao Ministério Público a tarefa de definir a melhor estratégia para implementação dos planos de ação de governo e dos serviços de saúde adequados às circunstâncias geopolíticas e socioculturais brasileiras.

 

Em razão do exposto, determino o arquivamento do expediente. Comunique-se aos subscritores, com as homenagens de estilo.

 

Brasília, 26 de março de 2020.

 

AUGUSTO ARAS

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA