A desigualdade ampliada no enfrentamento da pandemia

Sob o título “Pandemia de descaso e insensibilidade“, o artigo a seguir é de autoria do juiz Germano Silveira de Siqueira, ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra (*).

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“O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.” – Darcy Ribeiro

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O Brasil vive os efeitos de uma histórica pandemia (Covid-19), que se aprofundará no mês de abril, com potenciais e graves reflexos no sistema de saúde, na economia, na assistência social, nos negócios e na empregabilidade,  apesar dos gestos de pouco caso que partem do presidente da República, que minimiza um colapso sem precedentes na história recente.

Na medida em que a todos os brasileiros, inclusive à maior parte de trabalhadores e empresários, são impostas as suspensões de suas atividades regulares pelo isolamento social, com a finalidade de conter os efeitos do coronavírus e fazer  declinar as curvas contaminantes, cresce o anseio pela adoção de rápidas medidas destinadas a manter as condições mínimas de subsistência dos trabalhadores e de satisfação mínima de capital do giro das empresas.

É importante lembrar, no entanto, para bem dimensionar o panorama da realidade nacional, que mesmo antes de toda essa crise, segundo matéria de O Globo [publicada em 16/08/2019], já se apontava, tomando como referência o ano de 2014, a existência do “mais longo ciclo de aumento da desigualdade” no país, indicando-se que eram 17 semestres seguidos, a partir daquele ano, em que a concentração de renda crescia.

No Brasil, aliás, para se ter ideia da iniquidade que nos diz respeito, apenas cinco bilionários têm mais dinheiro do que 100 milhões de habitantes (os 50% mais pobres da população), justamente estes, os menos abonados,  que tiveram  acesso em 2017 a apenas 2% da riqueza nacional, percentual menor do que no ano de 2016, que foi de 2,7% por cento.

O número de bilionários chegou a aumentar em meio à crise, elevando-se de 2016 para 2017 em mais 12 pessoas, somando 43 nessa condição, já tendo subido esse número em 2019 para 58, segundo matéria do portal UOL de 05/03 do ano passado, reproduzindo conteúdo da Revista Forbes.

Fácil concluir, portanto, que a  desigualdade já vinha se aprofundando e os movimentos legislativos dos anos mais recentes, a exemplo  da revisão de conquistas históricas dos trabalhadores, como na reforma trabalhista, por exemplo, serviram apenas para acumular progressivamente o capital, sem nenhum traço efetivo de compromisso com a distribuição de renda, distanciando ainda mais os bilionários dos pobres e contribuindo para realçar em cores mais fortes a histórica desigualdade social que marca a nossa realidade. 

Mas voltando ao que se dizia, as vozes emanadas do presidente da República e de sua  equipe econômica, que trabalham diuturnamente em proveito e no interesse do capital especulativo, se já não traziam ideias estimulantes nos primeiros dias dessa crise sanitária e humanitária, com as primeiras medidas trabalhistas apresentadas na semana passada, deixaram claro o caráter excludente que marca suas ações, além de juridicamente não demonstrar qualquer apreço pela Constituição.

Nesse sentido, a equipe comandada pelo ministro Paulo Guedes e pelo presidente Bolsonaro deu a conhecer, no dia 23/03, a Medida Provisória nº 927,  a mesma que trouxe, no seu artigo 18, a insólita previsão da possibilidade de serem os contratos dos trabalhadores brasileiros suspensos por até quatro meses e sem nenhum tipo de pagamento salarial, regra essa logo revogada pela MP 928, depois das severas, contundentes e múltiplas críticas dos mais variados segmentos da sociedade.

Pelo que estava previsto nesse artigo 18 da MP 927 (e aplicado por alguns empregadores nas 24 horas em que esteve em vigor) a empresa [se quisesse] pagaria apenas uma ajuda de custo aos trabalhadores e teria que manter planos de saúde, caso houvesse esse benefício que, na prática, muitas das pequenas e médias empresas nem concedem.

Tratava-se de uma solução completamente diferente das que foram concebidas em  países como os Estados Unidos da América, Reino Unido, França , Alemanha, entre outros,  que resolveram retirar recursos de seus orçamentos e do Tesouro para dar suporte aos seus trabalhadores nesses tempos de completa indefinição e tormenta.

Nada diferente, entretanto, pode-se esperar de uma equipe que já chegou, na Medida Provisória nº 905 [lembrem-se] a criar a absurda taxação sobre o seguro-desemprego para que os desempregados (sim, os desempregados!) financiassem o contrato verde e amarelo, um dos maiores absurdos até então registrados no país, só superado agora por esse de igual ou maior calibre.

Mas as incoerências e inconstitucionalidades da Medida Provisória não param por aí. Na verdade, tão grave quanto o artigo 18 da MP 927 (que chamou mais atenção pelo aspecto econômico imediato), é o seu artigo 2º, prevendo acordos meramente individuais, sem a presença dos sindicatos, o  que entra em conflito com o inciso VI do art.7º da Constituição Federal [determinando a necessidade negociação sindical] e com a regra do art.8º, VI da Lei Maior, que atribui papel indeclinável aos Sindicatos. 

Especialmente no contexto das grandes crises as negociações coletivas são fundamentais, tendo os sindicatos como vetores de solidariedade e fraternidade,  dando voz ao conjunto dos trabalhadores, como agente negocial legitimado constitucionalmente. 

Eventual “flexibilização” provisória de direitos (mesmo em tempos de crise), não podem , portanto, passar por simples acordos individuais, como sugere o art.2º da MP/927, o que resultaria, na prática, em fazer  prevalecer a vontade exclusiva do empregador sobre a lei e sobre normas coletivas, o que é completamente abusivo e não tem apoio na Constituição.

Gravíssimo, por outro lado, que a Medida Provisória nº 927, em seu artigo 3º, VI, de maneira completamente equivocada, tenha preconizado a “suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho”, o que atinge gravemente a proteção não só dos trabalhadores em geral, mas também dos profissionais envolvidos no atendimento de saúde. Não por acaso, a grande mídia passou a noticiar no final de semana casos de desproteção e não fornecimento de EPIs em hospitais, o que coloca em xeque também a saúde de pacientes, já tendo a Justiça do Trabalho, por meio de ações movidas pelos sindicatos e pelo Ministério Público, determinado o fornecimento de EPIs aos trabalhadores em vários Estados.   

O fato é que, em todo esse cenário danoso, da  MP 927 para cá o que se teve como novidade foi, a partir do dia 26/3, a majoração pela Câmara Federal de R$ 200,00 para R$ 600,00 do valor da proposta inicial do governo destinada a pagar bônus em favor dos trabalhadores informais –o chamado coronavoucher– depois aprovado em 30/03 no Senado e agora passando por um processo burocratizado de sanção no Executivo, que ainda não sabe como fazer chegar esses valores aos destinatários.

O governo cria inclusive dificuldades para sancionar o projeto, alegando indevidamente ser necessário aprovar a PEC emergencial, dando provas mais uma vez do pouco caso que dispensa aos problemas concretos da população mais fragilizada.

E é preciso muito mais. É necessário que o governo decida injetar de seus próprios recursos, diretamente na conta dos trabalhadores que deles precisam, sem maiores burocracias e com contrapartida de manutenção dos contratos de trabalho, dinheiro que viabilize a continuidade dos empregos formais, sem que isso dependa da celebração de empréstimos por parte das pequenas e médias empresas, a juros de 3,78% ao ano, como exigiu o Banco Central na semana passada, o que pode gerar ainda mais dificuldades, inclusive no pós-crise.

Nesses tempos em que o governo age muito timidamente, quase paralisado no aporte de recursos financeiros para os trabalhadores e para médias e pequenas empresas, tropeçando em gargalos jurídicos, enquanto a necessidade das pessoas avança, deveria ter agilidade para despojar-se de recursos que já dispõe e, compensatoriamente, tomar a iniciativa de aprovar o que está há décadas determinado no artigo 153, VII da CF, que é o imposto sobre grandes fortunas e sobre o lucro dos bancos, já que o Parlamento está em mora há décadas nesse tema, mora que já fez com que o Brasil deixasse de arrecadar bilhões de reais aos longos desses muitos anos.

A fortuna não tributada dos bilionários brasileiros, por exemplo, é de quase um trilhão de reais e só o lucro dos três maiores bancos privados foi de mais de R$ 55 bilhões, apenas em 2019, sendo de R$ 300 bilhões nos últimos cincos anos.

Ao contrário dessas possibilidades, no entanto, em meio à adoção desse conjunto de iniciativas até então lentas e frustrantes para os trabalhadores, tem-se que apenas para as grandes empresas estão abertos créditos privilegiados, ao mesmo tempo em que são flexibilizados para o sistema bancário os depósitos compulsórios (e os bancos aumentaram os juros na crise), com evidentes sinais de que para a “alta patente” do poder econômico as soluções têm sido muito mais ágeis e ilimitadas, ao contrário das alternativas para a população assalariada e para os pequenos empresários.

Na verdade, o que se tem até aqui desenhado e que a pandemia revela não é diverso do crescente panorama de exclusão do quadro de convivência civilizatória e democrática que atormenta parcela cada vez mais abrangente da sociedade. 

Vivemos um tempo em que as advertências de Boaventura Souza Santos, notadamente da perspectiva dos trabalhadores em geral, são completamente pertinentes. Para ele:  “grupos sociais cada vez mais vastos são expulsos do contrato social (..) tornam-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de cidadania são, de fato, lançados num novo estado de natureza, a que chamo fascismo social”. 

Dessa perspectiva, precisa-se ter em conta que um projeto de país não pode prescindir de proteção social para os trabalhadores mais vulneráveis, sob pena de comprometer a própria ordem democrática, como alerta Ulrich Beck ao dizer que “se o capitalismo global (..) dissolver os valores essenciais da sociedade do trabalho, o vínculo histórico entre capitalismo, estado de bem-estar social e democracia será rompido”.

Impõe-se a todas as pessoas comprometidas com o bem comum, com o presente e  com o futuro da humanidade,  refletir sobre essas questões para reafirmar e defender o projeto civilizatório básico de nação, que passa por assegurar direitos humanos e sociais mínimos aos brasileiros e brasileiras, com base da prevalência da Constituição, para que a todos aqueles que dependam de seu trabalho para viver tenham asseguradas condições existenciais saudáveis, igualdade de direitos, cidadania e dignidade, opondo-se ao descaso e à insensibilidade reinantes.

(*) O autor é juiz do Trabalho na 7ª Região (CE), graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC (1990) , Especialista e Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza (Unifor).