Pandemia e trabalho: uma judicialização anunciada

Foto: Juca Varella/Folhapress
Frederico Vasconcelos

Sob o título “O governo, a pandemia e o trabalho: Crônica de uma judicialização anunciada”, o artigo a seguir é de autoria dos juízes do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade (*)

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Auxílio do Estado para substituir ou pagar salários (EUA, Dinamarca), moratória em contas junto a serviços públicos (Espanha, França), impedimento temporário de dispensas sem justa causa (Argentina). Essas são algumas das medidas oferecidas por diversos países para lidar com os efeitos trabalhistas da pandemia.

As propostas do Executivo Brasileiro demoraram, chegaram na madrugada e seguiram, em boa medida, na contramão do resto do mundo.

Duas medidas provisórias merecem a nossa atenção. A primeira veio na noite do domingo 22/3 (MP 927/2020). A segunda veio no final da noite da quarta 1º/4 (MP 936/2020). Ambas pretendem apresentar regramentos emergenciais para as relações de trabalho nesses tempos difíceis.

Possuem méritos –veja-se, em particular, o art. 17, II, da MP 936, a prever o uso de meios eletrônicos para a convocação, deliberação, decisão, formalização e publicidade na negociação coletiva entre sindicatos e patrões–, mas também contêm seriíssimos equívocos e tropeços.

A MP 927 trouxe medidas razoáveis para a postergação do recolhimento do FGTS, a antecipação das férias e a adoção do teletrabalho (exceto por não ter, mais uma vez, estabelecido limites para a jornada de trabalho à distância).

Andou mal, porém, ao inaugurar uma “livre negociação” individual para a modificação de qualquer cláusula contratual, porque placitou a coerção econômica.

Também atentou contra a saúde e a segurança laboral nos arts. 15 e 31, suspendendo a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais –justamente em tempos de pandemia– e retirando o poder punitivo dos auditores fiscais do trabalho em grande parte das fiscalizações.

A questão mais dramática, porém, foi a inconstitucional proposta de suspensão unilateral do contrato de trabalho, condenando os mais pobres a buscar sobrevivência na informalidade das ruas e se expor à contaminação. Tal preceito, no entanto, resistiu poucas horas: ao som das panelas, foi “cancelado” pelo presidente da República, via Twitter (o que depois se formalizou com a competente medida provisória). E, em substituição ao calamitoso art. 18 da MP 927, sobreveio a recentíssima MP 936, que institui o “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”.

Na nova versão, como se haveria de esperar, o Poder Público assume parte da responsabilidade política e econômica pela manutenção da ordem em tempos de caos.

Isso já foi feito no passado, inclusive em momentos de relativa normalidade, recorrendo-se ao Fundo de Amparo ao Trabalho (em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, também por MP, inseriu o lay-off no art.476-A da CLT: suspensão dos contratos de trabalho para qualificação profissional).

Agora, lança-se mão de dois mecanismos principais.

A uma –e outra vez–, institui-se a suspensão temporária dos contratos de trabalho, por até 60 dias, mediante acordo individual escrito (retrocedendo em matéria de diálogo social, porque mesmo o lay-off de 2001 exigia a convenção ou o acordo coletivo).

A duas, autoriza-se a redução de salários (com redução proporcional de jornada), em três faixas distintas (25%, 50% e 70%), sob contrapartida do chamado “benefício emergencial de preservação do emprego e da renda” (Beper), de aparente natureza assistencial, no respectivo percentual de 25%, 50% e 70% do valor que seria devido a título de seguro-desemprego.

Para quem recebe mais de R$ 12.102,12 (dois tetos do INSS), tendo curso superior, e para os que não percebem mais que R$ 3.135,00 (três salários mínimos), essa redução poderá ser negociada individualmente, sem a intervenção do sindicato.

Pois bem. Há, no texto publicado, um engano e um vício.

O engano está na ideia de que a intervenção do sindicato pode ser “dispensada” na faixa dos menos favorecidos, porque o governo reporá praticamente toda a perda.

Não será assim, haja vista que o valor máximo do seguro-desemprego é de R$ 1.813,00. Quem ganhe os três salários mínimos e individualmente “concorde” com a redução de 70% –o que amiúde se dará sob a ameaça de demissão–, passará a receber R$ 940,50 do empregador e mais R$ 1.269,10 da União, perdendo, no total, R$ 925,40.

Isto é muito para os que estão nessa faixa salarial. E, considerando-se que mais da metade dos trabalhadores brasileiros têm renda menor que um salário mínimo, projeta-se um perigoso impacto macroeconômico (porque a economia precisará aumentar o consumo para conter a recessão).

Há, outrossim, o vício: a Constituição diz claramente, em seu art. 7º, VI, que é direito de todos os trabalhadores urbanos e rurais “a irredutibilidade de salários, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. Essa garantia não se suspende sequer em caso de estado de sítio ou de estado de defesa, que são os dois casos positivados de excepcionalidade constitucional.

Não há possibilidade de suspendê-lo por conta de um estado de calamidade que não deita raízes na Constituição, mas na lei (art. 65 da LRF). A não ser, é claro, que se queira exercitar um “juízo de proporcionalidade” muito perigosos para o porvir.

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Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA).

Rodrigo Trindade, juiz do Trabalho, foi presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região