Poder de polícia e equívocos da AGU
Sob o título “O poder de polícia não é mera providência educativa“, o artigo a seguir é de autoria do advogado Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado.
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I – O FATO
Segundo o site do jornal Correio Brasiliense, no dia 12 de abril, o governo promete reagir na Justiça a medidas restritivas tomadas por governadores. Em uma rede social, o advogado-geral da União, André Mendonça, afirmou que monitora as ações para conter a pandemia, e pode mover ações contra alguns atos implantados nos estados.
“Diante da adoção ou ameaça de adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais do cidadão por parte de autoridades locais e estaduais, informo que a Advocacia-Geral da União aguarda informações do Ministério da Saúde e da Anvisa para a propositura de medidas judiciais”, escreveu.
Para a AGU, algumas medidas podem extrapolar os limites impostos pela Constituição. Uma das críticas se refere à eventual prisão de quem descumprir a quarentena, ação que está sendo cogitada pelo governador de São Paulo, João Doria.
“Medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas do Ministério da Saúde e da Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio. Medidas de restrição devem ter fins preventivos e educativos –não repressivos, autoritários ou arbitrários”, completou Mendonça.
As medidas estudadas pela Advocacia da União, órgão de Estado, e não de governo, estão na convergência das últimas posturas do atual presidente da República no sentido de combater o isolamento, numa atitude repulsiva às recentes diretrizes tomadas pela Organização Mundial de Saúde.
Ignora a AGU o conceito do poder geral de polícia e de tipos penais que protegem a saúde pública, alguns dos quais o atual presidente poderia ter infringido.
II – OS TIPOS PENAIS QUE PODERÃO SER APLICADOS PARA O CASO
Os tipos penais são principalmente os constantes dos artigos 268 e 330 do Código Penal que, em verdade, por serem crimes de menor potencial ofensivo, não determinam a prisão em flagrante, mas, dentro da regra processual estabelecida para a transação penal, tal como previsto na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.
O que é determinação do Poder Público? É ordem ou resolução dos órgãos investidos de autoridade para realizar as finalidades do Estado. Trata-se de norma penal em braço, dependente de que venha a complementá-la para que se conheça o seu real alcance.
É certo que essa determinação do Poder Público deve voltar-se à introdução (ingresso ou entrada) ou à propagação (proliferação ou multiplicação) de doença contagiosa.
O bem jurídico tutelado é a saúde pública.
Para o caso a Lei nº 13.979/2020, que prevê várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, destacando-se o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos, é a fonte normativa para a matéria. Desobedecida pode gerar conduta criminal inscrita no artigo 268 do Código Penal.
Mesmo que o sujeito não tenha certeza de estar contaminado, mas aceita a hipótese, e transita normalmente por locais públicos, assumindo o risco de transmitir a doença, cometerá o ilícito com dolo eventual.
Mas, entenda-se: estamos diante de crimes de menor potencial ofensivo sobre os quais cabe transação. Na medida em que tomadas as providências coercitivas será caso de expedição de Termo Circunstanciado de Ocorrência. Não será caso de prisão.
Aliás é bom lembrar que no início da crise do coronavírus, os ministros da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, editaram portaria no dia 17 de março, disciplinando medidas compulsórias para enfrentar a pandemia de coronavírus.
A portaria prevê que o descumprimento das regras impostas pelos órgãos públicos para evitar a disseminação do coronavírus seja passível de enquadramento no CP, ou seja, quem descumprir determinações médicas de quarentena, isolamento ou internação pode incorrer nas penas dos artigos 268 do CP (detenção de um mês a um ano, e multa) e 330 (detenção de quinze dias a seis meses, e multa), se o fato não constituir crime mais grave.
A implementação das medidas independe de autorização judicial: “No exercício de polícia administrativa, a autoridade policial pode encaminhar o infrator a sua residência ou ao estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas”.
III – O EXERCÍCIO DE UM PODER DE POLÍCIA
As medidas tomadas a partir da edição da Lei nº 13.979/2020 serão aplicadas no contexto do poder de polícia. Portanto, não são meras medidas indicativas ou educativas, mas impositivas.
São elas:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos;
IV – estudo ou investigação epidemiológica;
V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI – restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos;
VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020) b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:
a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e b) previstos em ato do Ministério da Saúde.
1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:
I – o direito de serem informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a assistência à família conforme regulamento;
II – o direito de receberem tratamento gratuito;
III – o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020.
3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo.
4º As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei.
5º Ato do Ministro de Estado da Saúde:
I – disporá sobre as condições e os prazos aplicáveis às medidas previstas nos incisos I e II do caput deste artigo; e
II – concederá a autorização a que se refere o inciso VIII do caput deste artigo.
6º Ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura disporá sobre a medida prevista no inciso VI do caput. (Redação dada pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
6º-A O ato conjunto a que se refere o § 6º poderá estabelecer delegação de competência para a resolução dos casos nele omissos. (Incluído pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
I – pelo Ministério da Saúde;
II – pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V, VI e VIII do caput deste artigo; ou
III – pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.
8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
Na matéria, sabe-se que compete, de forma concorrente, à União, aos Estados e aos Municípios, a teor do artigo 24, XII, da Constituição Federal, legislar sobre a defesa da saúde.
Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia.
O poder de polícia não é uma faculdade da administração pública, mas sim um dever, um poder-dever, que o Estado não pode renunciar ou transigir.
Quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia.
A finalidade de todo ato de polícia é voltado ao interesse público. É uma manifestação do princípio da supremacia do interesse público.
Ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 26ª edição, pág. 823) que “o poder de polícia tem, contudo, na quase totalidade dos casos, um sentido realmente negativo, mas em acepção diversa da examinada. É negativo no sentido de que através dele o Poder Público, de regra, não pretende uma atuação do particular, pretende uma abstenção. Por meio dele normalmente não se exige nunca um facere, mas um non facere”.
Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.
É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.
A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.
Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia e seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).
A autoexecutoriedade constitui uma das características fundamentais da maior parte dos atos administrativos imperativos, como revelou Flávio Bauer Novelli (Eficácia do ato administrativo, in Revista de Direito Administrativo, volume 61, pág. 36).
Será a executoriedade um poder que a lei atribui a certas autoridades administrativas, e não, precisamente, um predicado dos atos dessas mesmas autoridades.
É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris pelo Poder Judiciário.
A executoriedade é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, coativamente, o provimento, no caso de oposição do sujeito passivo.
Por certo a execução forçada por via administrativa pode ser precedida de autorização legal expressa, como ensinou Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, páginas 248 e 249).
A execução forçada administrativa propriamente dita é a que se realiza através de meios direitos, que visam a obter o mesmo resultado prático que se teria obtido, se o devedor tivesse cumprido, voluntariamente, a obrigação ou, pelo menos, resultado equivalente.
Já as medidas de coerção indireta, aplicáveis, diretamente pela Administração, e, portanto, executórias, salvo as multas, visam a reforçar a execução forçada.
As multas poderão ser reparatórias, ressarcitórias ou cominatórias. São assim as que se limitam a cumprir essa finalidade; além disso, visam a ressarcir a Administração de algum prejuízo que a ação ou inação do administrado lhe causou; que visam a compelir o administrado a uma atuação positiva, se renovam automática e continuadamente até a satisfação da pretensão administrativa.
Na França, em apenas dois dias mais de quatro mil multas foram aplicadas sobre pessoas que, sem justificativa, deixaram suas casas. A lei estabelece regras claras para autorizar uma pessoa a estar fora de sua residência. Mas o que as autoridades logo viram foi que o valor de apenas 35 euros por violar as regras não estava sendo suficiente para manter a população em casa.
Dois dias depois de entrar em vigor, a multa teve de ser triplicada. O governo passou a destacar cem mil homens de suas diferentes forças de ordem para tentar lidar com as restrições. Além disso, quem circula é obrigado a carregar um documento em que atesta a necessidade do deslocamento.
Estamos diante de um poder de polícia sancionatório. Para tanto aplicam-se os seguintes princípios em sua aplicação: a) legalidade, anterioridade, tipicidade, proporcionalidade. Estão aqui envolvidos os conceitos de infração e sanção administrativa. A infração é o descumprimento voluntário de uma norma administrativa que prevê sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade.
Sanção administrativa é a providência gravosa prevista em caso de incursão de alguém em uma infração administrativa cuja imposição é da alçada da própria administração. A multa é uma dessas sanções. As sanções espelham a atividade repressiva decorrente do poder de polícia. Estão elas difundidas nas diversas leis que disciplinam atividades sujeitas a esse poder
Nessa linha de pensar, as decisões administrativas de polícia são, por sua natureza, executórias. A Administração tem a faculdade de recorrer a meios coercitivos para compelir ao cumprimento de suas determinações. Mas entenda-se que essa coação administrativa, desde que exercida, de forma moderada, e dentro de quadros legais, é permite, nos limites da proporcionalidade.
As providências que assim vierem a ser adotadas se enquadram em parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.
A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:
a) razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;
b) razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;
c) a razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.
Há ainda o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, onde se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.
Mas, entenda-se, que a atividade penal, de cunho repressivo, está fora do poder de polícia, não é autoexecutável. A aplicação de medida preventiva ou ainda punitiva penal somente se dará diante dos parâmetros do devido processo legal.