Defensoria Pública de São Paulo propõe a inclusão digital dos mais vulneráveis
Sob o título “Um novo normal“, o artigo a seguir é de autoria de Davi Depiné, defensor público-geral do Estado de São Paulo. (*)
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É difícil neste momento acreditar que efeitos positivos podem surgir da pandemia da Covid-19 e suas consequências. Por ora, lutamos para evitar a perda de vidas. Milhões de brasileiros perdem muito ou quase tudo de sua renda, equipes de saúde trabalham no limite de suas capacidades e leitos hospitalares se esgotam apesar dos esforços de gestores estaduais e municipais.
No entanto, parafraseando Chico Buarque, vai passar. E o que resultará, após a crise, dependerá em grande medida das escolhas feitas durante sua permanência.
No âmbito dos serviços públicos relacionados à Justiça, mudanças muito significativas foram feitas em curto espaço de tempo. Isso permitiu ao Judiciário e a demais instituições que continuassem em funcionamento, ainda que para atendimento de demandas consideradas urgentes, que implicam a proteção a direitos fundamentais, individuais ou coletivos.
Em boa parte, essa mudança em tempo recorde foi possível em razão da prévia digitalização de processos e de sistemas informatizados, ainda que não totalmente integrados, por todas as instituições jurídicas. Mesmo antes da quarentena, os processos digitais já formavam a maioria dos feitos em trâmite.
Mas essa relação eletrônica, virtual, envolve o diálogo do Judiciário com demais atores: integrantes da Defensoria Pública, Ministério Público e advocacia. A novidade do modelo atual de funcionamento do sistema de justiça é a integração do jurisdicionado ao formato eletrônico.
E nesse ponto reside o principal desafio enfrentado por todas as instituições, mas em especial pelas Defensorias Públicas, pois se adiciona ao contexto a exclusão digital de grande parcela da população, em especial daquela mais vulnerável, cuja cidadania é exercida de forma precária, pontual e orgânica, imune a bytes e a fluxos de dados.
Para se ter uma ideia do que isso representa, utilizando como referência o município de São Paulo, o setor de triagem de demandas cíveis da Defensoria Pública paulista realiza, em média, 700 atendimentos diários. Nesse número incluem-se cerca de 70 pessoas em situação de rua, que cotidianamente procuram a instituição na Capital, em busca de soluções para questões que, muitas vezes, até fogem da esfera judicial.
No cenário atual, toda essa demanda foi transferida para canais de contato remoto, seja por via telefônica, seja através de outros veículos de comunicação eletrônica. É nítido que falta algo nessa equação, pois a inclusão digital pressupõe recursos e aptidões prévias de quem utiliza as diversas formas de comunicação telemática e, infelizmente, estamos muito distantes de uma desejável equidade nesse campo.
Eis o desafio que se impõe ao sistema de justiça e ao serviço público em geral. Ultrapassada a etapa de integração de sistemas, digitalização de processos, a inclusão do cidadão em um mundo mais digital deve ser a tônica. Com a vedação de filas e aglomerações, canais específicos de acesso supervisionados devem ser disponibilizados, totens de atendimento, computadores de acesso gratuito em espaços públicos.
Mas, para além dessas medidas, a linguagem utilizada também deve ser revista, tornada mais acessível e compreensível por quem não detém conhecimento jurídico ou formal, democratizando o acesso à informação e ao acompanhamento de processos.
Apenas com medidas destinadas à ampliação da cidadania digital um novo normal pode se estabelecer. Do contrário, o afunilamento do acesso à justiça será agravado, afastando ainda mais a parcela da população que já encontra inúmeros obstáculos para o alcance de mecanismos de proteção a seus direitos fundamentais.
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(*) O autor é Mestre em Direito Processual Penal pela USP.