‘Como um terrorista, Bolsonaro visa à tomada efetiva de poder’, diz magistrado
Sob o título “Nau da insensatez”, o artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié Jr., magistrado e presidente da Academia Paulista de Direito.
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Presidente não pode ter linha direta com chefe da polícia. Assim como juiz não pode ter contato privado com procurador.
Escrevi este texto ainda sem saber como terminaria mais esse episódio da novela das conturbadas relações internas do governo Bolsonaro. Se seria apenas nova escaramuça ou se, realmente, geraria a troca de outro ministro.
O desfecho do caso levou à demissão.
O fato é que as últimas tentativas do governo Bolsonaro de alterar a composição e a hierarquia na relação com os partidos que o apoiam –afastando o DEM, por exemplo, e se aproximando do PTB; bem como estabelecendo maior espaço para o chamado “gabinete do ódio” e para o mundo totalitário sonhado pelos que, tomando o nome em vão, dizem-se “evangélicos”, novo coro de apoio à antipolítica governamental– estão a demonstrar também que a insanidade é uma forma de encenar uma prática de poder que se funda na construção constante de conflitos.
O que se sabe é que, longe da loucura, o governo Bolsonaro tem um objetivo que é a criação de sucessivas e crescentes crises institucionais, visando a realizar o intento claro de seu chefe, que é o da instalação de um governo –medido pela capacidade de resistência–, no mínimo, autoritário, e, no máximo, ditatorial, no Brasil.
Bolsonaro despreza a diferença, os valores democráticos e vê a Constituição como um conjunto de tolices.
Em relação à ordem republicana e ao Estado Democrático de Direito, põe-se como um terrorista, que realiza inúmeros atos de agressão, visando à instabilidade e à tomada efetiva de poder.
Ser Presidente para ele não basta, pois é uma função estabelecida dentro do conjunto institucional e sujeita a controles e ao compartilhamento de governo. O que deseja é decidir sozinho. Nesse aspecto, mesmo a verdade, de qualquer ordem que seja, científica, artística, cultural ou social, econômica e jurídica, é um obstáculo para ele.
Os ministros que escolheu têm de se submeter a isso. É uma concepção não política nem jurídica, mas teológica de ministério.
Na economia, por exemplo, Guedes é um instrumento adequado exatamente para desfazer a verdade econômica: não é que o Estado tenha que se limitar a uma atividade ancilar do mercado. Mas, isto sim, segundo a visão fascista e antiliberal que inspira seu universo, que a verdade deve ser estabelecida pelo governante ou ditador, os instrumentos de controle da economia e de proteção social têm de ser extintos, para que o ditador se transforme no único regulador e no único protetor.
Por meio da antieconômica, Bolsonaro busca o despotismo. Nisso, Bolsonaro conseguiu o auxiliar perfeito, fingindo ignorância, para se acobertar e oferecer ao empresariado fanático que o apoia uma fachada de racionalidade que inexiste.
O mesmo buscou na Justiça e Segurança Pública. Seu ministro, ora demissionário, era o auxiliar perfeito, não apenas pela popularidade entre a classe média leiga em relação ao Direito, mas sobretudo porque já vinha praticando a transgressão institucional em sua prática jurídica, dando azo ao desvirtuamento de normas jurídicas penais e constitucionais e ao abandono de garantias fundamentais da ordem republicana e democrática.
Bolsonaro, assim como fazia na Economia, também na Segurança e Justiça pretendia se acobertar, fingindo a mesma ignorância, mas usando a Pasta para seu intento de desmantelamento da ordem jurídica brasileira, contra a “rule of law”, a democracia e os direitos humanos.
A fachada de rigidez contra a corrupção era evidentemente falsa, pois o discurso anticorrupção pode ser usado –como a história demonstra, inclusive a brasileira– para qualquer finalidade, inclusive para praticar a corrupção. Ora, a corrupção fundamentalmente é o desvirtuamento da ordem jurídica pelos próprios agentes do Estado, é abuso de poder, e abuso de poder é contrariar manifestamente o Direito e a ordem constitucional.
Entretanto, assim como o ministro da Saúde demitido não soube servir como auxiliar nessa jornada de desvencilhamento da verdade, o mesmo ocorreu com o ora demissionário ministro. Entre outras razões, porque este se mostrou despreparado para o exercício da função, ou ao menos para dar uma imagem de que teria a capacidade jurídica necessária para desempenhar a chefia da Pasta e o papel que lhe reservava o Presidente.
O Brasil tem uma classe jurídica atenta, que soube criticar, a tempo e com rigor, a deficiência jurídica do programa e das propostas do ministro. De há muito, a relação se desfazia.
No caso do ex-ministro da Saúde, pela pelo apego moral ao que determinava a verdade científica, diante do real perigo da pandemia. No caso do ministro da Justiça e da Segurança Pública, pela incapacidade de exercer o papel desfigurador do Direito, em decorrência da ausência de formação jurídica adequada para efetivamente chefiar a função tradicional e tão relevante que é a do Ministério da Justiça.
Nem se diga que houve divergência de fundo entre o Presidente e seu auxiliar –que, aliás, garantiu que o seu chefe seria um “democrata convicto” (sic) e que estava absolutamente unido aos ideais que pregava.
Diante de tantos atentados contra a ordem jurídica constitucional –sem qualquer reparo do ministro demissionário, e que constituíram verdadeiros crimes de responsabilidade, a serem apurados por processo de impeachment– é preciso saber se a parte da elite que ainda deseja se servir de Bolsonaro, também não vai optar por abandonar a nau da insensatez.