O resgate da Justiça depois da pandemia

Sob o título “Só o medo consegue remover montanhas jurídicas“, o artigo a seguir é de autoria de Caetano Lagrasta, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

***

  1. A algazarra das crianças

Crê-se, de novo: somente uma Reforma poderá salvar o Judiciário deste vírus físico, que dentro de alguns dias, meses ou anos (há previsão de que a pandemia e o pandemônio se prolonguem até 2022) poderá realinha-lo, mas já se apresenta como aguda crise na prestação dos serviços judiciários.

Para começar, por algum começo, seria essencial fazer uma previsão dos processos em sua natureza, tendo em vista a especificidade dos litígios, até atingir uma divisão equânime dos serviços, entre as diversas Seções do Direito Privado, sem que se exclua, por ora, a Seção Criminal, o que será apreciado mais adiante.

Partindo-se de divisão mínima, pode-se prever que haja aumento considerável das questões, sempre urgentes, de Família e Sucessões. Na primeira em razão gritante dos Alimentos, devidos ou a serem pagos; na guarda compartilhada ou esparramada; no regime de visitas, com ou sem a Polícia, e, ainda, no vale tudo da divisão dos bens do casal.

Evidente: a paralisação não pode prejudicar o interesse superior de crianças e adolescentes, que, igualmente, e por óbvio, diante do isolamento horizontal, felizmente, deixam de comparecer aos fóruns ou delegacias (v. Provimentos CSM nºs 2554 e 2555/2020, ambos de 24/4/2020, neste destacando-se o par. Único, do Art. 3º, quanto a aspectos do Direito de Família.

Não pagar, por desemprego ou na despedida por justa causa, ante o fim das atividades de indústria ou do comércio, sem contar aqueles dos contratos precários, sem quaisquer direitos trabalhistas, acrescem-se os iludidos que se arriscaram às atividades na condição de autônomos (ou camelôs). Sobram os profissionais liberais (advogados, arquitetos, médicos, engenheiros etc.), seja em que polo da demanda se encontrem. De todos os modos, quebra-se o modelito “necessidade de uns (ou de todos) e disponibilidade (do vice-versa) ”.

O que dizer então da utilização do imóvel ou imóveis do casal: recebimento de alugueres e pagamento das despesas condominiais pela ocupação, de quem os usufrui com exclusividade e enquanto não partilhado o patrimônio. Qual seria o ponto de partida para o reexame dos contratos ou dos termos de ajustes consensuais?

Aliás, enquanto não houver determinação da Corregedoria-Geral da Justiça isentando os cidadãos, dentro dos limites do isolamento ou do fim da pandemia, ou mesmo das despesas da delegação e salários de seus funcionários, das custas e emolumentos dos serviços, dificilmente as partes poderão recorrer a esses serviços ou à expedição de certidões e escrituras.

Se o Direito de Família sempre exigiu, sem conseguir, a rapidez das querelas e a solução dos conflitos, corajoso seria busca-la, no âmbito da Conciliação ou da Mediação, em que Instâncias for, desde que aparelhadas e com profissionais treinados.

Os juízes devem estar preparados e conscientes, o mesmo com relação aos desembargadores, para que o chamado das partes em Juízo, doravante, tenha outro perfil e seja regido exclusivamente pela busca imediata de solução, ou ainda que sejam os respectivos processos julgados com preferência absoluta, a partir da data da distribuição – desprezada eventual “fila” dirigida às demais matérias, salvo justificativa comprovada, a critério do juiz ou do desembargador Relator.

Estas primeiras considerações reiteram velhos gargalos e problemas que se perpetuam em nosso Poder Judiciário, diante de obstáculos criados pelos próprios litigantes ou pelo sistema legal e judicial, anotados aqueles dirigidos expressamente à Pandemia, pelo Conselho Superior da Magistratura paulista (Provimento nº 2.545/20).

Acresce admitir que a Conciliação, perante o magistrado, se apresenta como mais urgente e eficaz para se espantar a morosidade, ao contrário da Mediação que, ao preservar a solução pelas próprias partes, resume-se à sugestão do mediador, sem indicar solução do litígio, que se derrama pela morosidade das marchas e contramarchas dos tempos escuros que se aproximam.

A urgência é tamanha que talvez possa se arriscar solução conciliada prévia, podendo o litígio ser reaberto, tão logo levantado o isolamento ou cessada a pandemia, o que constaria dos termos do ajuste, desnecessária a presença do magistrado, salvo quando decorrido esse prazo se torne necessária nova discussão ou seja aquela considerada definitiva.

 

2.  Os mortos se levantam

No campo das Sucessões, os problemas, pensam alguns, seriam de urgência menor e podem ser obviados pela suspensão – admitida inclusive na fixação de prazos de prescrição e decadência – como demonstração de apego ao hábito judiciário ancestral, de que suas soluções devam se prolongar no tempo. Advogados, juízes e servidores olham com maus olhos o processo de Sucessão – longo, com discussões enormes, brigas eternas de herdeiros, etc.

Ocorre que institutos de urgência já existiam, mas que agora a ultrapassam para se atingir as disposições almejadas pelo de cujus e eventualmente disputada por seus herdeiros.

Temos, desde logo: a) a dissolução de eventual sociedade comercial, que evite a interrupção nefasta dos negócios e o consequente abandono dos operários e suas famílias à própria desgraça; b) o direito à morte digna, cuja solução, nestes tempos tenebrosos, escapa-se a qualquer previsão, eis que os corpos começam a ser enterrados em valas comuns, não sendo ultrajante supor que, em breve, poderão ficar largados a céu aberto e insepultos, com isso totalmente negado o poder decisório transmitido pelo morto a seu executor de vontades; c) que dizer ainda da inegável  urgência no reconhecimento de filiação post mortem ou resultante da socioafetividade, garantia de sobrevivência digna ao reconhecido, depois de longa espera ou esquecimento ou manifestação concreta de sincero e aguardado Amor; d) prevenir a ocupação do único imóvel do falecido, pela viúva ou por algum filho, que o administre perante o espólio, na condição de síndico, observando-se a ampliação de poderes deste, eventualmente trazidos pelo PL n° 1.179/20 ; e) como último, mas não derradeiro, a imediata e urgente transmissão dos legados que, de maneira explícita, se tornem passíveis de perecimento.

Isso sem contar o colapso dos pedidos de recuperação sem regras claras, que podem jogar milhares de operários, familiares e eventualmente empresários e comerciantes.

 

  1. Um lugar limpo e bem iluminado

Presume-se que um Tribunal, Estadual ou Superior (Federal) se apresente com as características do belíssimo conto de Ernest Hemingway: um lugar limpo e bem iluminado.

Adentrando a seus meandros começam-se a ouvir alguns gritos e muitos sussurros.

Assim, deve-se, desde logo, encarar o que os doutos chamam de Órgão Especial, composto por número razoável de agentes, obedecida a proporção da ocupação integral de suas Cadeiras de Plenário. Nele são discutidas questões administrativas e sobre o andamento da Corte, seus membros, juízes inferiores, punições, reformas, mudanças, etc.

Inafastáveis os critérios de perdão ou afastamento de magistrados: muitas vezes perdoados graças ao “bom mocismo” que, em alguns casos, embaça a incapacidade para o exercício do cargo, enquanto em outras, prodigaliza desculpas para uma absolvição iníqua.

Seria de todo dispensável abordar esses temas, mas de nenhum interesse aos que na carreira não estejam. Contudo, destacar alguns é de todo aconselhável para evitar a modorra ou o sono do leitor.

Inicia-se a escavação com: a criação de Varas ou institutos assemelhados, como exemplo, o Departamento de Execução Penal ou o desenvolvimento de um Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC) visando esse, especificamente, a implantação da Mediação e da Conciliação. Note-se que esse tipo de solução visa a implantação experimental, dispensada a elaboração de lei, enquanto na primeira hipótese o Departamento impede que outros magistrados possam se candidatar, tendo em vista que o Departamento é escolha direta do Conselho Superior da Magistratura.

A criação em caráter provisório e experimental teria, após um prazo razoável, que contar com a abertura de concurso para magistrados, promovidos ao exercício do cargo, retornando-se ao sistema legal de preenchimento por antiguidade ou merecimento.

Quando o Tribunal perpetua a provisoriedade, acaba criando situações à margem do sistema judiciário. Assim, estes postos, são preenchidos através de expedientes que se afastam dos critérios da carreira, e seus indicados se veem submetidos à condição de meros ocupantes de Vara ou de construções de caráter administrativo, demissíveis ad nutum, em discutível independência e sem que se submetam, a qualquer tempo, a uma verificação da produtividade na prestação do serviço ou oportunidade para atualização do conhecimento.

Outros fatores, ligados à morosidade das decisões, e que tem sido enfrentado com algum sucesso, é o da prolação de votos cuja extensão ultrapassa limites do razoável. Evidente que não se pode obrigar o juiz a distribuir seu voto para conhecimento dos demais, o que abreviaria o tempo das Sessões, e sua discussão.

O que temos hoje é a absoluta perda de tempo, totalmente desaconselhável em circunstâncias normais, o que dirá em momentos de premência e pandemia. Inflige-se, desta forma, inútil sofrimento às partes e advogados, tendo este o prazo de 10 a 15 minutos, enquanto os desembargadores podem não só retirar o processo de Pauta, pedir vista, o que lhes é assegurado regimentalmente, nada obstante determinados a devolver o processo na sessão seguinte.

 

  4. O crime não compensa

Em regime de isolamento e pandemia, a situação carcerária agrava-se de forma incomensurável.

Soltar todos ou alguns? Todos os idosos, acima de 60 anos – grupo de risco – ou mesmo nesse momento há que se perquirir sobre a natureza e a gravidade do crime e seus reflexos?

Se nessas circunstâncias se mantiver preso o condenado por crimes hediondos, a mulher com filhos menores de 16 anos, o idoso, com mais de 60 anos, será de todo aconselhável submeter a estrita observância as condições do cárcere e de convivência forçada, pois sem espaço adequado para isolamento, evidente que se está a condenar esses réus a indisfarçável pena de morte, não prevista em nosso sistema constitucional.

A falta de regulamentação estadual e de manifestação do Ministério da Justiça faz prever situação caótica para o sistema carcerário.

Se não há condições de isolamento mínimo, conforme indicação da Organização Mundial da Saúde, evidente que a única solução é determinar-se a manutenção do réu preso, tão-só na proporção do isolamento digno, impondo-se a liberação imediata do excedente para cumprimento em regime domiciliar, colocando-se as seguintes questões: a) existem tornozeleiras eletrônicas em número suficiente?; b) E aqueles que sequer têm domicílio ou família?; c) O que fazer com os condenados mantidos em Medida de Segurança, tecnicamente absolvidos? Solta-los, todos; sem assistência hospitalar ou atendimento ambulatorial, eis que não têm mais contato com familiares e não possuem profissão ou domicílio localizável?

Felizmente ainda não se concretizaram duas coisas na órbita penal, apesar da insistência de governos e do Ministério da Justiça: o “plea bargain” e a privatização dos presídios.

Para os que desconhecem o sistema norte-americano, a figura acima quer dizer, mais ou menos, o seguinte: o réu é levado à presença do Promotor Público, juntamente com seu advogado contratado, ou dativo, com o qual manteve algum contato minutos antes, vê-se convencido a não se submeter a julgamento, diante da possibilidade de condenação mais grave; desta forma confessa pequeno delito ou infração, atingindo pena mais(?) branda e de aplicação imediata, em regime fechado. Sua remoção para a prisão, indevida, serve para manter um entra e sai – que garante o pagamento pelo Estado de sua manutenção em presídios privatizados.

Não há dúvida de que adotar esse sistema, num momento como o em que vivemos, conduziria a enorme caos, diante do número de “condenados” – sem passar pelo crivo do julgamento, a obrigar mudança legal para a prisão para pequenos delitos ou infrações. Consigne-se que ao sair, padecerá o réu do estigma da vingança social. Cumprindo penas, ainda que mínimas, em nosso sistema carcerário equivale à mais abjeta das condições, desde o momento da prisão provisória, até seu cumprimento, seu retorno para as ruas dará de cara com o emprego perdido e a destruição da família (nesse sentido, foi excepcional a série da Netflix: “The Night Of”  – de 2016 e que, por motivos óbvios, não passou da primeira temporada, ao menos neste país).

 

  1. Final

A montanha não se move, mas as retroescavadeiras estão prontas para investir numa nova vida de progresso e esperança.

Teremos, ao término da pandemia, conforme o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, duas batalhas: 1. Sanitária (destruição da família e mortos); 2. Econômica (miséria, desemprego, fome); acrescente-se a isso: 3. Litigiosidade Incontida (milhões de novos processos na solução dos antigos e aos novos ritos e direitos).

A montanha jurídica não se movimentará quanto aos dois primeiros, salvo de forma indireta, no exercício de rápida e eficaz coerção. No entanto, com relação à terceira, a criatividade apresentará condições de procedimento, sentenciamento e execução eficazes, tendo alguns já adiantado que o número de julgadores, advogados, promotores, servidores, dentre outros, poderá ser preenchido mediante convocação de aposentados, garantidos vencimentos e honorários razoáveis.

Mas, o subjacente a essas tentativas é urgente a mudança de mentalidade de todos, na busca da pacificação social, através da Mediação e da Conciliação, primeiro movimento da montanha judiciária, na luta contra o Caos e o Formalismo Processual.