Doação de sangue por homossexuais é um ato de cidadania, diz advogado

Sob o título “A igualdade lava-se com sangue“, o artigo a seguir é de autoria do advogado criminalista Paulo Sergio Coelho, do escritório Toron, Torihara & Cunha Advogados. (*)

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Em 1982, o jornal The New York Times alertava para o aparecimento de uma doença séria no sistema imunológico que atingia principalmente homens homossexuais. Apelidada de GRID – “gay-related immunodeficiency” –, era comparada a uma “bomba-relógio” que permanecia silenciosa no organismo até deflagrar um gravíssimo processo infeccioso.

O título da reportagem ilustra o desconhecimento da época acerca do HIV, vírus causador da AIDS: “Nova doença homossexual preocupa autoridades de saúde”. Quase quarentena anos depois, o estigma ainda não foi extirpado.

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento de uma ação que questiona a constitucionalidade de dois atos normativos – uma portaria do Ministério da Saúde e uma resolução da Anvisa – que proíbem a doação de sangue por homens que tenham tido relações sexuais com outros homens em um período antecedente de doze meses.

Segundo os órgãos estatais, as normas visam a reduzir o risco de transmissão do HIV via transfusão sanguínea, porque, ainda que o doador teste negativo para o patógeno, existe o período de “janela imunológica” entre a infecção pelo vírus e a sua detecção por testes de laboratório. Embora reconheça que exames de alta sensibilidade reduziram a janela para dias, e não meses, o Estado insiste na abstinência homossexual durante um ano para habilitar um homem a doar sangue. Mais uma vez, o HIV é visto como vírus gay.

Em outubro de 2017, o relator, ministro Edson Fachin, qualificou os atos normativos como “discriminação injustificável”, pois o critério de risco para a contração de doenças sexualmente transmissíveis não é a orientação sexual, mas o comportamento sexual.

“O fato de um homem praticar sexo com outro homem não o coloca necessária e obrigatoriamente em risco. Pense-se, por exemplo, em relações estáveis, duradouras e protegidas contra doenças sexualmente transmissíveis”, apontou. Ao traçar uma distinção entre grupos e condutas de risco, sentenciou: “As normas reguladoras de doação de sangue devem estabelecer exigências e condicionantes baseadas não na forma de ser e existir em si das pessoas, mas nas condutas por ela praticadas”.

O entendimento foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux, que votaram para derrubar a restrição. O ministro Alexandre de Moraes divergiu parcialmente: apesar de reconhecer a inconstitucionalidade dos dispositivos, defendeu que o sangue fosse identificado, separado, armazenado e submetido a testes sorológicos após o período de janela imunológica. A proposta, contudo, é tecnicamente inviável, pois, como informou a Advocacia-Geral da União, a amostra de sangue, independentemente do tempo de espera, conterá a mesma quantidade de antígenos, anticorpos e material genético.

O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes e, agora, retornou à pauta do Plenário Virtual. Como o voto-vista acompanha o relator, já há maioria para declarar inconstitucional a restrição. A votação deve encerrar-se nesta sexta-feira, dia 8.

Além de violar a Constituição – por presumir que toda e qualquer relação homossexual apresenta risco elevado de transmitir doença –, a norma do Ministério da Saúde e da Anvisa carece de consistência técnica: a restrição à doação de sangue aplica-se a um homem homossexual que, em relação monogâmica, use preservativos, mas não a um heterossexual que faça sexo desprotegido, inclusive anal, com sua parceira.

A preocupação com a segurança do banco de sangue é legítima e necessária, mas não pode servir como pretexto para discriminar um grupo inteiro de pessoas, independentemente de comportamentos individuais. Não à toa, a legislação brasileira prevê uma entrevista do doador com um profissional de saúde para avaliar se o histórico do candidato oferece algum risco à coleta, especialmente aos receptores do sangue. Impedir, de antemão, que um homem gay ou bissexual possa submeter-se a essa etapa é discriminá-lo injustamente.

O julgamento do STF consiste em mais um passo emblemático do contencioso gay em busca de igualdade.

Em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças. Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia deixou de classificar a prática homossexual como perversidade. A briga por direitos iguais, porém, mal havia começado.

A população LGBT ainda seria obrigada a bater à porta da Suprema Corte diversas vezes: em 2011, viu a união homoafetiva ser reconhecida como família; em 2019, conseguiu que a homofobia fosse equiparada ao crime de racismo; e, agora, está prestes a obter o direito de exercer sua cidadania: praticar o ato solidário, empático e altruísta de doar o próprio sangue.

Dados do Ministério da Saúde indicam que uma única doação pode salvar até quatro pessoas. No entanto, apenas 1,9% dos brasileiros têm o hábito de doar sangue; o ideal, segundo a OMS, seria 3%.

Em meio à pandemia do coronavírus, os bancos de sangue atingiram níveis ainda mais críticos: a Fundação Pró-Sangue, em São Paulo, acendeu o alerta vermelho de seu estoque, e o Instituto Nacional de Câncer, no Rio, viu as doações caírem 50% em abril. Não existe momento mais propício para o STF declarar: LGBT não é sigla de doença, nem de tipo sanguíneo.

Em nome do preconceito, muito sangue já foi derramado.

(*) O autor é bacharel em ética, política e economia pela Yale University (EUA) e em direito pela USP. O texto foi publicado originalmente no blog do Fausto Macedo/Estadão.