Flerte do Executivo com o autogolpe
Sob o título “A defesa da democracia“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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A chegada ao poder no Brasil de Jair Bolsonaro — o primeiro presidente ultradireitista desde o retorno à democracia em 1985 — veio acompanhada de grandes temores por parte de seus adversários e das minorias.
Necessário pensar na amplitude do princípio da democracia e ainda nos meios de defende-la.
O princípio da democracia destina-se, pois, a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legítima leis juridicamente capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de direito em um processo de normatização discursiva.
O princípio da democracia contém, desta forma, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima dos membros do direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente.
Na lição de Habermas, o princípio da democracia pressupõe preliminarmente e necessariamente a possibilidade da decisão racional de questões práticas a serem realizadas no discurso, da qual depende a legitimidade das leis.
Para Habermas, é equitativa a ação quando a sua máxima permite uma convivência entre a liberdade do arbítrio de cada um e a liberdade de todos conforme uma lei geral.
Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.
Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha.
Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais no Brasil.
Isso pode-se chamar de democracia militante.
Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados.
Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação.
Um desses pontos que não podem ser objeto de alteração é o respeito a independência dos poderes. Tal serve de alerta para o Brasil onde temos um Executivo em flerte com a ditadura e o autogolpe.
Isso é o que se tem a considerar.
É possível conviver com uma proposta normativa que elimina a própria regulagem de forma a admitir partidos que advoguem que advoguem soluções totalitárias? Parece-nos que não. Ideologias que impeçam ao diálogo não convivem com a democracia, onde as opiniões convergem e divergem.
Assim não há espaços para modelos decisionistas que não convivem com posições antagônicas.
O Estado Totalitário traz uma falsa consciência de direito. Um universo antitético.
O que há é a necessidade premente de manter, num país que tem uma constituição-cidadã de índole democrática como a do Brasil, o Estado Democrático de Direito.
Comentando o mesmo princípio da Constituição da República portuguesa, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira oferecem aos estudiosos, uma resposta:
“Esse conceito – que é seguramente um dos conceitos-chave da CRP – é bastante complexo, e as suas duas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e a componente do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático”.
Os estudiosos veem o conceito de Estado de Direito como uma coloração nitidamente germânica. Ali foi que, após duas guerras mundiais sangrentas, e um desrespeito flagrante aos direitos humanos, que o conceito se sedimentou com maior rigor.
O Estado de Direito é o oposto do Estado de Polícia. É de sua essência, pois, a submissão da atuação do Estado ao direito, do que defluirá a liberdade individual, e o repúdio à instrumentalização da lei e da administração a um propósito autoritário.
Canotilho e Vital Moreira consignaram sobre o princípio:
“Afastam-se ideias transpessoais do Estado como instituição ou ordem divina, para se considerar apenas a existência de uma res pública no interesse dos indivíduos. Ponto de partida e de referência é o indivíduo autodeterminado, igual, livre e isolado”.
O Estado de Direito está vinculado, nessa linha de pensar, a uma ordem estatal justa, que compreende o reconhecimento dos direitos individuais, garantia dos direitos adquiridos, independência dos juízes, responsabilidade do governo, prevalência da representação política e participação desta no Poder Legislativo.
Ainda ensinaram Canotilho e Vital Moreira:
“O Estado de Direito reduziu-se a um sistema apolítico de defesa e distanciação perante o Estado”. Tornam-se as suas notas marcantes: a repulsa da ideia de o Estado realizar atividades materiais, acentuação da liberdade individual, na qual só a lei podia intervir e o enquadramento da Administração pelo princípio da legalidade.
A procura da jugulação do arbítrio, como acentuou Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, primeiro volume, pág. 422), só se pode dar debaixo dos subprincípios que estão enfeixados na concepção ampla do Estado de Direito. Não se conhece a liberdade senão os países que consagraram a primazia do direito.
Deve-se então entender a natural reação da democracia alemã e essas ideologias nefastas voltadas a uma dogmática que afronta a convivência democrática.
São próprias da democracia e, desta forma, devem ser entendidas, pois aparecem para preservá-la.
Tal como as medidas tomadas contra uma pandemia devem ser contidas todas as ofensas à democracia e a ordem constitucional.