‘Voltemos nossa preocupação para a pandemia’, sugere juiz

O artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié, magistrado e presidente da Academia Paulista de Direito.

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Os antigos Romanos sabiam que, para vencer uma guerra, era necessário contar com a ajuda dos deuses, a virtude da autoridade e os valores humanos. Entre tais valores, claro, está a bravura ou coragem. Mas é surpreendente que a vitória numa guerra não seja pensada em termos concretos dos materiais dispostos, como número de soldados, de armas, das provisões.

O que vale são os aspectos abstratos que se extraem do comportamento dos guerreiros, de seus chefes e dos presságios divinos. Não é do material, digamos, do econômico que resulta a vitória, mas dos valores, do espírito.

Vamos transpor esses três elementos para o presente e pensar sobre as guerras que travamos em nosso Brasil.  Nosso presente é complexo, há muitos fatos e ações difíceis de entender, sobretudo de relacionar.

Talvez apanhar o “fio da meada” seja o modo de solucionar esse enigma. A expressão, muito antiga, tem a ver com a indústria têxtil e com os fios que servem de matéria prima para os tecidos, como o algodão. Aquele emaranhado de fibras tem de ser composto, alinhado, quer dizer, é preciso compor um fio e passa-lo por um orifício estreitíssimo, para que a máquina possa tecer, isto é, conectar os fios e forjar algo íntegro.

Muito bem, quais são as nossas fibras: do lado divino, quer dizer, da natureza, a pandemia; do lado da autoridade, um vazio; dos valores humanos, uma infinidade anárquica. Portanto, nossos inimigos nos encontram em um momento bastante frágil, apto a nos encaminhar a uma derrota quase certa. Lembro, aqui, da derrota que os Romanos sofreram na Pártia, sob o comando de Crasso: maus presságios, terreno desconhecido, inimigo ruidoso e ardiloso.

A COVID-19 determina precaução, nunca bravatas; as fake news, cautela, nunca entusiasmo infantil; a sociedade internacional, pluralidade de caminhos, todos cobertos por propaganda, salpicada de teorias e práticas sutis, mas firmada em terreno institucional exigente.

Nesse velho caso da derrota romana, o primeiro elemento que os historiadores da época ressaltaram foi a falta de atenção aos sinais naturais, que eram todos desfavoráveis. Mas a falta de visão e a ambição de um líder e de seu filho, levaram à perdição dos soldados, que desconheciam o inimigo e o terreno em que lutariam, grande parte perdendo a vida, outra, a liberdade.

Sugiro, portanto, que prestemos atenção à evolução desse sinal grave da natureza, que nos encaminha a novos problemas e à agudização de outros, permitindo-nos refletir sobre a tomada de novos rumos e a recuperação de antigos valores. Por sorte, não estamos sujeitos à vontade única de um líder cego ou mal intencionado e não podemos nem devemos nos atirar no terreno inseguro do contágio e da morte. Sobretudo, podemos recuperar um pouco nosso conexão com o sagrado, que vem sendo tão vilipendiado, usurpado por falsos profetas, objeto de contrafação midiática.

Voltemos, portanto, nossa preocupação para a pandemia e deixemos de lado as disputas de liderança entre o déspota e aquele que se considerava seu vizir. Sabemos, pelas fábulas orientais, de onde vieram esses Partos, que o vizir sempre quis disputar o poder com o déspota, tornar-se déspota ele mesmo e fazer vingar suas razões, até a chegada e o golpe do novo vizir.

Portanto, em termos concretos, nem déspota nem ex-vizir enxergaram os presságios e se lançaram numa batalha fora de hora e de propósito. Partiram à guerra no momento errado e estão fadados à derrota, cegos daquilo que é essencial, agora, para povo e seus valores: a pandemia e suas consequências sanitárias e sociais, assim como a questão essencial dos valores.

O fato político – a disputa pelo poder (frágil e fugidio) de influência da opinião pública, em tempos de redes sociais e de vínculos efêmeros e velhacos – deve-lhes ser desastroso. Nós, o povo, não temos nada a ver com isso. Devemos ocupar nosso tempo com o que é realmente importante para a sociedade.

Não devemos dar atenção a esses palanques de egoísmo, de vaidade e de morte. Se o fizermos, teremos o destino a que nos encaminham todo egoísmo, toda vaidade, que é o vazio e a morte.

Quanto ao comportamento desses que se desejam líderes, comecemos por uma comparação.

O ex-ministro da Saúde saiu do governo de modo mais digno do que o ex-ministro da Justiça. Aquele enfrentou o déspota, esclareceu o que era melhor e qual era seu dever. Foi claro e honesto com seu chefe. Demitido, deixou o governo sem atirar.

Enfim, esse não é um governo de que se participe impunemente. É um modo de exercício do poder em constante conflito, guerra ideológica, guerra contra todos os fantasmas, que exige posições de antagonismo perpétuo, perseguições. Sua arma é semear o ódio, a desconfiança e as divisões.

Já o ex-ministro da Justiça não se considerava mero ministro. Entendia que era titular de um departamento quase isolado. Imune a quase tudo, desde que cuidasse daquilo que considerava sua tarefa, algo assim como uma missão quase sagrada.

O seu discurso de posse mostrou bem isso. Essa missão, por exemplo,  era apresentar o anteprojeto de mudança legislativa e cuidar da corrupção, numa atividade mais de ordem policial do que propriamente da Justiça.

O lado preferencial de seu ministério era o da segurança, a ser exercida do modo como a compreendia – já que a segurança é termo plurívoco, que aponta várias concepções, ações possíveis e caminhos diversos. Nisso havia mesmo um alinhamento ideológico com o governo.

A pior disputa é a que se dá entre iguais.

O anteprojeto que apresentou, contudo, não estava bem concebido nem organizado jurídica e politicamente. Continha muitas falhas técnicas e mesmo legais. Era um esboço de anotações, como eu disse, na época, numa entrevista e num artigo, aqui neste blog publicados.

O Congresso – componente importante do poder político e de sua legitimidade – mas ignorado pelo ex-ministro – fez o possível para organizar e tornar o projeto um pouco melhor e mais de acordo com a Constituição. Isso é o que mais chama a atenção no inconformismo do ex-ministro. O fato de o Congresso ter-se realmente envolvido e melhorado algo que,  se não era ruim de todo, também não mostrava nada de realmente elogiável.

Era surpreendente que um ministro da Justiça, que havia chegado com tanto apoio da opinião pública, apresentasse algo tão rudimentar. Nem essa ajuda do Congresso e empenho – sequer o apoio do próprio Presidente – ele reconheceu. Pelo contrário, reclamou de um e de outro em entrevista à revista Veja, dizendo que deveriam simplesmente ter aprovado o que propusera. Isso significa que inexistia adequação ou mesmo aptidão à função. Qualquer jurista sabe que o processo legislativo tem como titular o Poder Legislativo, exercido em conjunto pelo Congresso e pelo Presidente, esse sendo apenas auxiliado por seus ministros.

Ao sair, o ex-ministro criou um fato político e fez afirmações sérias, do ponto de vista jurídico.

O procurador-geral da República fez a instauração de um inquérito de via dupla: as afirmações configurariam crime ou seriam falaciosas? Com a celeridade e o acerto que são peculiares à experiência e ao elogiável saber jurídico-técnico, o ministro relator do inquérito determinou a oitiva requerida, com celeridade, o que ocorreu.

Foi trazido seu teor a público pela imprensa. Não é possível fazer o julgamento de mérito das provas, que ainda serão colhidas, e que devem incluir o depoimento dos ministros citados no depoimento, bem como dos delegados da Polícia Federal, que exerceram a função da Chefia Geral e da Superintendência carioca. Dizem, ainda, respeito ao material correspondente a trocas de mensagem por WhatsApp.

Nada indica até aqui que as provas tenham sido contundentes. Pode-se esperar um final frio, um inquérito que não elucide crime algum. Ou que tenha um destino estendido, se houver essa iniciativa de quem o dirige, nos limites das garantias constitucionais, no que poderão pesar mais contra o Presidente suas próprias declarações e atitudes de enfrentamento da Constituição e do Estado Democrático de Direito.

O peso do que declarou o ex-ministro pode ser pequeno, constituir um detalhe num emaranhado de fatos. Talvez ele permita apanhar um dos vários fios de uma meada intrincada, que se espalha pelas ligações institucionais, talvez até pessoais ou familiares daqueles envolvidos.

Mas o fato político aponta mais uma situação pessoal, justificável ou não. Uma frustração de expectativa, talvez. Mas isso tem a ver, provavelmente, com a preocupação que externei, em breve artigo, logo que ele teve seu nome divulgado para o cargo.  Isto é, uma visão muito estreita do que significava a função tão importante do Ministério da Justiça.

Essa função fundamental é, na verdade,  a de empreender políticas públicas eficazes para construir a justiça em nosso país de tantos problemas, de tantas desigualdades. O Ministério da Justiça não é apenas, como parecia pensar o ex-ministro, um elemento no exercício das tarefas da Polícia Federal.

Enfim, essa batalha não é nossa, não guarda interesse para a sociedade.

Voltemos nossa preocupação para a pandemia.  Somos uma sociedade só.