‘Em pouco tempo, seremos o epicentro da pandemia’, alertam magistrados
Sob o título “Covid-19 e direitos humanos: sob as luzes de Filadélfia“, o artigo a seguir é de autoria dos juízes do Trabalho Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade. (*)
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Há exatos setenta e seis anos, em 10.5.1944, poucos dias após o desembarque aliado na Normandia, proclamou-se a primeira declaração internacional de direitos, sob os auspícios da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, em sua 26ª sessão.
Vinha a lume a Declaração da Filadélfia, que serviria de modelo para a Carta das Nações Unidas e, depois, para a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Passada uma geração, seu texto jamais pareceu tão atual e urgente.
Reafirmaram-se, à altura, os princípios fundamentais sobre os quais repousa a tutela internacional do trabalho:
(a) o trabalho não é uma mercadoria;
(b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável para o progresso ininterrupto;
(c) a penúria, seja onde for, é perigosa para a prosperidade geral;
(d) a luta contra a carência, em qualquer nação, deve ser conduzida com infatigável energia, sob esforço internacional contínuo e conjugado, no qual os representantes dos empregadores e dos empregados, em pé de igualdade, discutam com as representações dos Governos – perfazendo o tão decantado “diálogo social” – e conjuntamente deliberem, em ambiente democrático, com vista ao bem comum; e
e) todos os seres humanos, de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual em condições de liberdade e de dignidade, de tranquilidade econômica e com igualdade de oportunidades.
A Declaração da Filadélfia é um texto pioneiro e único. Sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial e sob os ventos álgidos da depressão econômica, ousou fazer da justiça social o pilar da reedificação de um planeta prostrado ante a própria ignorância.
A justiça social – que hoje tem guarida na maior parte das constituições democráticas, inclusive a nossa, qual pilar da ordem econômica brasileira (CF, art. 170, caput) – e a solidariedade humana (inclusive intergeracional) haveriam de ser os padrões de valor que substituiriam a neutralidade cega das leis que levaram ao totalitarismo, à pobreza e às mortes em massa.
Textos legais atrozes, como o das leis de Nuremberg de 1935 – proibindo casamentos e certos vínculos de emprego entre judeus e alemães – ou a lei de eugenia de 1933 – estabelecendo a esterilização obrigatória de pessoas com histórico de doenças físicas e mentais –, não deveriam mais ter lugar no devir da civilização.
Neste ano de 2020, o 76º aniversário da Declaração ocorre em meio a outro momento raro de provação da humanidade: a pandemia da Covid-19. E, mais uma vez, o vórtice da História reclama um repensar dos caminhos.
Há pelo menos três décadas, o “espírito de Filadélfia” cede espaço aos caprichos do “mercado total” globalizado.
Indexa-se a pessoa humana de acordo com as teorias e as linguagens da economia: já não há trabalhadores, mas “recursos humanos”; não há méritos do espírito – conhecimentos, habilidades, atitudes –, mas “capital humano”; perde-se até mesmo a humanidade das trocas, porque a força de trabalho se negocia abstratamente em um “mercado de trabalho” (conquanto o trabalho não devesse ser mercadoria)…
Aos poucos, as próprias contenções históricas do capitalismo, engendradas para lhe dar sustentabilidade a longo prazo – como, por exemplo, o Direito do Trabalho e a legislação correlata –, vão sendo carcomidas por políticas de perfil abertamente ultraliberal e neoconservador.
E, não por outra razão, estamos revivendo fenômenos sociais do século XIX, como p. ex. movimentos grevistas dedicados à proteção da integridade física das pessoas (e não propriamente à melhoria de suas condições sociais), como recentemente se viu com a Amazon norte-americana: cerca de trezentos empregados deflagraram uma greve on line, de engenheiros e técnicos da empresa, em razão de mais de trinta casos de contaminação pelo sars-cov-2 nos depósitos do grupo.
Movimentos similares se viram no outro lado do Atlântico, duzentos anos antes: o “ludismo”, que envolvia a invasão de fábricas e a destruição de máquinas porque sacrificavam empregos, estendiam as jornadas de trabalho, provocavam acidentes e tornavam os ambientes insalubres. Eis o nosso “museu de grandes novidades”, onde se pode ver o futuro repetir o passado.
Entre os pensadores contemporâneos que denunciam os riscos crescentes da ganância dos mercados, talvez o mais festejado seja, neste momento, o economista francês Thomas Piketty. Suas obras revelam com precisão estatística os efeitos deletérios de um capitalismo sem contenções, gerador de desigualdades insustentáveis e arbitrárias, idôneas a ameaçar a própria democracia.
Nos últimos séculos, a taxa de retorno sobre o capital foi de 5% em média, muito acima do crescimento da economia mundial, que ficou entre 1% e 2%.
A manutenção dessa margem histórica de ganho, em tempos de crise e à falta de inovações bastantes, termina por exigir a redução das taxas de retorno que se veem na outra ponta da relação econômica: salários e direitos trabalhistas. Talvez por isso, “redução de salários” tenha se tornado uma expressão da moda, na cena jurídica brasileira, em tempos de pandemia. Curiosamente, não se fala em taxação de dividendos nas grandes empresas.
Nessa alheta, os enredos das múltiplas crises geradas pelo advento do novo coronavírus são, em grande parte, moldados pelas escolhas feitas em décadas passadas. Há aqui três grandes aspectos relevantes a se tocar.
A uma, sob o discurso oficial da reversão do déficit público, há a questão do paulatino desmonte das estruturas estatais para a garantia dos direitos prestacionais (saúde, segurança, educação etc.).
Em particular, os descaminhos da nossa atual condição sanitária não se explicam apenas pela potencial letalidade do vírus, mas sobretudo pelas vulnerabilidades históricas do nosso modelo de saúde pública. No Brasil, apenas metade dos leitos de UTI estão disponíveis para três quartos de toda a população.
Estamos prestes a viver, no Sistema Único de Saúde, um “efeito Titanic” sem precedentes: muitos necessitados, poucos “botes salva-vidas” à disposição. Por isso, neste momento, o isolamento social é tão importante. E, nada obstante, a maior autoridade da República sabota metodicamente essa tão comezinha diretriz. Em pouco tempo, seremos o epicentro da pandemia.
Na véspera do aniversário da Declaração de Filadélfia, chegamos à marca dos dez mil mortos pela Covid-19.
A duas, sob o discurso extraoficial da meritocracia dos “predestinados”, há o desalentador descaso para com a miséria estrutural.
Apenas na cidade de São Paulo, estima-se que haja 50 mil moradores de rua. O Rio de Janeiro tem mais de 20% de sua população vivendo em comunidades com sérias carências de saneamento básico.
Para grande contingente desses homens e mulheres invisíveis, o benefício emergencial criado pelas MPs 936, 959 e afins não chegará. E são eles, sobretudo, os que mais estão expostos à contaminação horizontal: não à toa, os casos de Covid-19 têm avançado especialmente em bairros e subúrbios com menores níveis de renda média.
A três, e por fim, sob o discurso panfletário da modernidade, há o fenômeno da precarização do trabalho. Foi preciso uma crise epidêmica mundial para que se percebesse que trabalhadores informais não se confundem com empreendedores glamourosos.
No Brasil, a queda do consumo e a recente deflação (- 0,31% em abril) explicam-se pela queda da demanda, que por sua vez deita raízes, ao menos parcialmente, na queda da renda dos trabalhadores. E, para tanto, muito colabora o estímulo legal ao trabalho de autônomos, intermitentes, informais e diversas outras modalidades de trabalhadores precarizados.
Também para eles, a Covid-19 é uma ameaça especialmente grave, seja do ponto de vista sanitário, seja do ponto de vista econômico.
A Declaração de 1944 foi assinada na cidade de Filadélfia, cujo nome provém do grego “amor fraternal” (philos + adelphos).
Foi também na Filadélfia que, em 4 de julho de 1776, uma outra declaração fundou os Estados Unidos da América, que então se declaravam independentes, sobre as vigas-mestras da fraternidade, do progresso e da tolerância religiosa.
No tempo presente, os desafios sociais e econômicos postos pela pandemia global do novo coronavírus exigem, sim, sistemas jurídicos flexíveis, sobriedade fiscal e sustentabilidade econômica.
Mas exigem também civilidade, garantias sociais e direitos humanos. Pedem, sim, solidariedade e – porque não dizer – uma boa dose de “amor”.
Empatia será a melhor palavra.
Estatísticas de contaminação e morte não são meros números inofensivos: representam vidas humanas e podem ferir profundamente quem nelas se vê representado.
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Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019.
Rodrigo Trindade, juiz do Trabalho, presidiu a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) no biênio 2017-2019.