‘Melhor seria que as Forças Armadas se colocassem no seu lugar’, diz advogado
Sob o título “Quem são as Forças Armadas para interpretarem a Constituição?“, o artigo a seguir é de autoria de Airton Florentino de Barros, advogado, professor de Direito Comercial, fundador e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
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Nem mesmo a OAB, cujo Conselho Federal é composto por qualificados juristas, pode arvorar-se tradutora oficial do que quis dizer a Constituição Federal. Quem são as Forças Armadas para fazê-lo?
Melhor seria que as Forças Armadas se colocassem no seu lugar.
Militares são servidores públicos comuns e não agentes políticos.
A razão é simples. Político armado não governa. Torna reféns os cidadãos.
Justamente para evitar a repetição dos trágicos períodos ditatoriais, sempre protagonizados pelos militares, a vigente CF resolveu impedi-los de assumir o poder político nacional. Tanto que a eles vedou a filiação partidária (art.142, §3º, IV e V), estabelecendo, ainda, que o militar, ao assumir cargo público civil permanente, deve ser transferido para a reserva (§3º, II).
Além disso, como a mobilização de classe armada, mesmo com o exclusivo objetivo de promover campanha de defesa salarial, pode de repente converter-se em motim, com sérias consequências políticas, a CF cuidou também de proibir a sindicalização e a greve aos militares (CF, art.142, §3º, IV).
Não pode haver a menor dúvida. O poder político nacional é e deve ser exclusivamente civil.
Aliás, cabe às Forças Armadas aqui e em qualquer Estado civilizado enfrentar a guerra com Estado inimigo, impedir ou repelir invasão do território nacional por forças estrangeiras e garantir internamente a ordem pública, seja, nos primeiros casos, para proteger a soberania do país, seja, no último, para assegurar a integridade dos três poderes constitucionais.
Todavia, nenhuma das medidas destinadas ao cumprimento de tais funções pode ser adotada pelos militares sem a prévia requisição dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, em conjunto ou isoladamente, conforme o caso.
É que, na administração pública, há agentes políticos e agentes públicos comuns. Os primeiros contam com independência funcional, visto que sua atuação se caracteriza pela liberdade de decisão, dentro do campo de discricionariedade fixado pela lei. Já os servidores públicos comuns devem cumprir as decisões dos agentes políticos sob o comando dos quais se encontrarem. E os militares das Forças Armadas, organizadas com base na disciplina e na hierarquia, estão entre os últimos.
Se ainda não estiver claro que as Forças Armadas não são um Poder, que se considere, então, que a CF, ao definir a República brasileira, adotou a universal teoria montesquiana da tripartição dos poderes e, assim, reconheceu a existência apenas e tão somente dos três tradicionais Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (art.2º), não incluindo, como se vê, o Poder militar.
A propósito, a redação dada pelo Poder Constituinte originário ao artigo 42, da CF, designava expressamente os militares das Forças Armadas, juntamente com os dos Estados e Distrito Federal, como servidores públicos militares.
Dez anos depois da promulgação da CF, em razão do prestígio que, apesar dos censuráveis antecedentes, ainda mantinham, produziram os militares das Forças Armadas eficiente lobby junto ao Congresso Nacional, a ponto de conseguirem regramento orgânico específico, que os separou das forças militares estaduais e distritais, a partir da redação dada ao artigo 142 pela EC 18/1998.
Possivelmente motivado pela ilusão de superioridade que os agentes públicos federais costumam ter em relação aos estaduais, esse artifício não teve e nem pode ter o condão, entretanto, de dar às Forças Armadas a qualidade de Poder. Até porque, se essa fosse a intenção, o referido artigo 142 não teria dito, como disse expressamente, que são elas instituições nacionais permanentes, e não Poder. Muito menos tê-las-ia submetido, como fez também expressamente, à autoridade suprema do Presidente da República, numa indicação de que integram o organograma administrativo do Poder Executivo.
Seria inconcebível, pois, um poder que, por superioridade interventiva, incorporasse outro, cumulando suas atribuições constitucionais. Por isso mesmo é que a separação dos Poderes tornou-se cláusula pétrea (art.60, §4º, III).
O certo é que impôs a CF aos Poderes independência e harmonia (art.2º), entendendo-se por independência o fato de ter cada um a indispensável liberdade para, sem interferência, cumprir a sua atribuição constitucional e, por harmonia, o dever de cada um respeitar pacificamente as deliberações dos demais Poderes.
Assim, nenhum Poder pode alegar comprometimento de sua independência se os demais Poderes estiverem apenas cumprindo rigorosamente sua específica atribuição constitucional.
E a CF é clara ao dar ao Executivo o dever de cumprir as deliberações formais do Legislativo e ao Judiciário a atribuição de interpretar de forma definitiva a lei e a Constituição, coibindo a sua desobediência.
Nesse panorama, não há lugar para qualquer ação autônoma das Forças Armadas, ou de seus comandantes, que deverão ficar à espera de eventual requisição de qualquer dos Poderes para aí sim agirem, sempre nos limites da superior determinação.
Mesmo que, em último caso, entendam ilegítima determinada ordem de qualquer dos Poderes, não cabe às Forças Armadas agir conforme indicar a sua própria interpretação do texto legal ou constitucional, incumbindo-lhes, ao contrário, por meio da via processual apropriada, submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal, competente para interpretar em última Instância, de forma exclusiva e definitiva, com força coercitiva, os preceitos constitucionais.
Do contrário, ao tentarem subverter essa ordem constitucional, estarão as Forças Armadas na verdade, num golpe, instituindo, sob o critério da violência e não do Direito, um arremedo de Estado, que não contará certamente com aceitação oficial na comunidade internacional. E mais. De Forças Armadas defensoras da pátria nada terão. Converter-se-ão em deploráveis organizações paramilitares mercenárias ou milícias assaltantes do poder, desprovidas de qualquer autoridade legítima e do mínimo respeito popular.