Assassinato de George Floyd reacende debate sobre a violência contra negros
Sob o título “Manchas na farda”, o artigo a seguir é de autoria de Paulo Sergio Coelho, advogado criminalista. (*)
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Podem-se contar 71 buracos naquela casa no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Um projétil de 5,56 mm fatalmente atingiu as costas de João Pedro, de 14 anos, que brincava no jardim com seus primos – o calibre era idêntico ao do fuzil de um dos policiais que participavam da operação. Somente no dia seguinte a família encontraria o corpo sobre uma maca do Instituto Médico Legal.
Em meio à Copa do Mundo de 2018, Marcos Vinícius, também de 14 anos, caminhava uniformizado a caminho da escola quando foi baleado na barriga no Complexo da Maré, zona norte do Rio. A mãe dele conta que, antes de morrer, o menino disse: “Mãe, o blindado me deu um tiro. Eles não me viram com a roupa de escola?”. No dia da tragédia, mãe e filho tinham acordado atrasados. O menino arrumou-se rapidamente, recebeu a bênção materna e partiu para o colégio. O Estado devolveu-o morto.
João Pedro e Marcos Vinícius eram negros.
Se ainda existisse ceticismo sobre a brutalidade da polícia, bastaria mencionar que, em meio ao isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus, o número de mortes por policiais no Rio aumentou 43% em abril, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública.
Em São Paulo, a situação não foi diferente: no primeiro semestre deste ano, o aumento na letalidade policial foi de 23,2%. O número de vítimas é o maior da série histórica do governo, iniciada em 1996; de cada três mortos, dois são negros.
A Constituição Federal estabelece que a segurança pública, exercida pelos órgãos da polícia, visa à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Em uma sociedade democrática, a polícia é uma das profissões mais nobres. Policiais lidam com conflitos humanos complexos e enfrentam questões morais e jurídicas no exercício de seu ofício. No entanto, devem ver-se não como patrulhas armadas, mas como membros da comunidade.
Há algo de estruturalmente errado numa tropa que esvazia, ainda que acidentalmente, o pente de suas armas contra crianças. A desescalada da força é urgente. Cadetes aprendem a atirar, mas não são treinados a diferenciar o crime do entorno social. A mensagem precisa ser clara: não se pode pretender prender o bandido mais perigoso do país ao custo da vida de um inocente.
Apesar dos inúmeros casos de vítimas no Brasil, foi o assassinato de George Floyd, nos EUA, que reacendeu o debate sobre a violência contra negros. Os fatos causaram fúria e comoção: a polícia de Minneapolis havia prendido Floyd após o funcionário de um mercado tê-lo acusado de usar uma nota falsa de US$ 20 para comprar cigarros. O que se viu a seguir foi não apenas a quebra de protocolos de ação policial, mas a truculência sistêmica de policiais brancos contra suspeitos negros: embora tivessem imobilizado e algemado Floyd – que não oferecia resistência –, três agentes mantiveram pressão sobre seu dorso, enquanto outro assistia passivamente à cena.
Ignorando os apelos do detido – que chegou a clamar “mamãe!”, numa súplica divina à mãe, falecida há dois anos –, um dos agentes manteve o joelho sobre o pescoço de Floyd durante 8 minutos e 46 segundos. Ironicamente, era o mais veterano dos quatro, com 19 anos de experiência. Sua ficha já dava pistas sobre sua afeição à força: numa longa lista de reclamações estava a de uma mulher arrancada do carro após ser parada por trafegar em alta velocidade.
Se não fossem pelas testemunhas que filmaram a cena, a morte de Floyd se somaria a tantas outras anônimas e impunes. No relatório policial, seria narrada alguma situação de confronto ou risco aos agentes, que alegariam legítima defesa. E a divergência entre os relatos dos policiais e das testemunhas favoreceria a absolvição. O movimento Black Lives Matter surgiu justamente após a ausência de punição a um policial branco pela morte de um jovem negro, Trayvon Martin, que tomou um tiro no peito em seu caminho de volta de uma loja de conveniência.
No caso Floyd, a resposta institucional foi imediata. Logo após a divulgação das imagens, todos os policiais foram demitidos e presos. Aquele que se ajoelhou sobre o pescoço foi acusado de homicídio doloso, e os demais foram apontados como partícipes do crime.
No Brasil, diante de excessos e abusos, as corporações também não devem esconder-se atrás de códigos de silêncio e segredo. O Estado-assassino ofende os bons policiais, que, embora mal remunerados, colocam em risco suas vidas para cumprir uma missão constitucional. Em vez de blindar malfeitos, as corporações devem punir exemplarmente os criminosos que desgraçam as instituições. Facínoras fardados devem submeter-se à pedagogia da justiça.
Enquanto o país estiver coberto de sangue, ninguém conseguirá respirar.
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(*) O autor é bacharel em ética, política e economia pela Yale University (EUA) e em direito pela USP. Integra o escritório Toron Advogados.