‘Apenas a toga, e não o quepe, decide o que é constitucional e legal’, afirma juiz
Sob o título “2020 – uma odisseia em Brasília”, o artigo a seguir é de autoria de Gustavo Sauaia Romero Fernandes, juiz de direito em São Paulo.
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Acredito que, ousando falar por todos os candidatos aprovados e não aprovados em concursos públicos, o artigo 142 da Constituição Federal nunca foi sequer tema de primeira fase.
A partir de 2020, talvez isso mude.
Interpretações óbvias ou muito livres duelam entre si. A resposta correta será que apenas a toga, e não o quepe, decide o que é constitucional e legal.
Porém, não neguem a pergunta inconveniente que todos os leigos – e muitos não-leigos – devem estar se fazendo: e quando o próprio Judiciário passar por cima do ordenamento jurídico?
Já escrevi, por meio de pseudônimo, que a Constituição Federal confere ao STF o poder de definir uma cadeira como frigobar. Acrescento: e vice-versa.
Esta onipotência é uma provável tentativa de contornar a escusa para a inação do Pretório Excelso em todos os episódios revoltosos da História da República. Desde que Floriano Peixoto perguntou quem concederia Habeas Corpus aos ministros, ao saber que o remédio heroico fora movido em favor de rebeldes.
A liminar foi negada e o feito perdeu objeto por motivo tristemente óbvio: os pacientes foram fuzilados. E assim seguiu no século seguinte. Incluindo o julgamento que deu como constitucional a censura, em que apenas um ministro foi vencido – e jogou a capa no chão para nunca mais voltar à Corte. Seu nome era Adauto Lúcio Cardoso.
Deveria ser lembrado como um ícone das liberdades. Não é.
Agora ilimitados, o presidente do STF e seus presididos têm flertado com a falta de limites. Algumas situações podem ser justificadas como interpretativas, como a nova ordem de alegações finais entre delatores e delatados. Mas há pelo menos uma interpretação muito, muito, muito livre.
Um espaço físico de algumas centenas de metros quadrados foi ampliado a todo o território nacional – talvez interplanetário, se porventura um astronauta espalhar notícia falsa sobre Tofolli e colegas.
Investigações foram conduzidas sem objeto predeterminado. Um pretendente a cargo jurídico seria rejeitado pela banca se apontasse tal possibilidade. Alexandre de Moraes, primeiro colocado no MP paulista, disse que tudo bem.
Como no “causo” em que um candidato, ao ouvir que sua resposta era absurda, teria ousado responder “porque sou eu falando; se fosse Vossa Excelência era voto vencido”.
Neste contexto, deveria chamar a atenção uma possibilidade que ultrapassaria a interpretação mais livre das muito livres.
Falo da hipótese de o voto do ministro Fachin prevalecer quanto ao todo poderoso inquérito – inicialmente aceito pelo Executivo. Por tal ótica, apenas e tão somente as fake news e ameaças envolvendo o STF continuariam apuradas. Tudo o mais, incluindo provas já produzidas por autoridade incompetente, seria originariamente nulo.
Em tal cenário, partindo da presunção de que notícias falsas em campanha alvejavam adversários de campanha, e não ministros, como raios estas provas nulas poderiam ser emprestadas à Justiça Eleitoral?
Nulidades não se emprestam, pois são imprestáveis. Ainda mais numa Ação que pode retirar a candidatura do Chefe de Estado eleito. Mesmo que não poucos já considerem uma eleição de triste memória.
O que ocorreria se estas provas fossem aceitas e a chapa eleita fosse destituída? Quem poderia defender a Lei contra a não-aplicação da Lei?
Considerando que não estamos no México e que Chespirito já faleceu, resta o… artigo 142. Não para invadir o STF, mas para garantir aos demais Poderes que não precisariam cumprir uma decisão ultrateratológica, eventualmente autorizada por quem deveria impedir tal cognição.
Um precedente perigosíssimo como resposta a outro precedente perigosíssimo.
Seria dar aos leigos das Forças Armadas competência para analisar a norma como instância superior à superior.
Por mais que sejam orientados a só apertarem o botão em caso de extrema emergência, seriam os definidores de extrema emergência.
Em suma: combater uma bomba nuclear com outra, numa recriação metafórica de Dr Fantástico, de Kubrick.
Para que o futuro da ordem constitucional não seja o final do filme com Peter Sellers (inclusive porque, sem ele, só sobrariam lágrimas), é preciso que todos estejam atentos ao risco apocalíptico que uma combinação de decisões descuidadas pode gerar.
A restrição do inquérito ao STF deve, sem malabarismos interpretativos, afastar documentos impertinentes dos processos eleitorais.
Do contrário, poderemos ver um duelo entre ministros e generais para decidir quem será o HAL descontrolado na produção que inspira o título deste artigo. Hora de manter os olhos bem abertos. Não mais fechados.
Obs.: comparação cinematográfica à parte, o artigo nem se estendeu a respeito das provas já repassadas a outras investigações não condizentes com o voto de Fachin. O princípio de nulidade é o mesmo. Será necessário que o julgamento desta semana também verse sobre a validade e o destino de tais provas, incluindo derivadas.
Preferiu-se destacar a questão eleitoral porque, no país da gripezinha, não haveria como falar em “bombinha”.